Crônica

Crônica

Nos Primórdios
Era só água e sol de primeiro este recanto. Meninos cangavam sapos. Brincavam de primo com prima. Tordo ensinava o brinquedo "primo com prima não faz mal: finca finca". Não havia instrumento musical. Os homens tocavam gado. As coisas ainda inominadas. Como no começo dos tempos. Logo se fez a piranha. Em seguida os domingos e feriados. Depois os cuiabanos e os beira-corgos. Por fim o cavalo e o anta batizado. Nem precisaram dizer crescei e multiplicai. Pois já se faziam filhos e piadas com muita animosidade. Conhecimentos vinham por infusão pelo faro dos bugres, pelos mascates. O homem havia sido posto ali nos inícios para campear e hortar. Porém só pensava em lombo de cavalo. De forma que só campeava e não hortava. Daí que campear se fez de preferência por ser atividade livre e andeja. Enquanto que hortar prendia o ente no cabo da enxada. O que não era bom. No começo contudo enxada teve seu lugar. Prestava para o peão encostar-se nela a fim de prover seu cigarrinho de palha. Depois, com o desaparecimento do cigarro de palha, constatou-se a inutilidade das enxadas.
O homem tinha mais o que não fazer!
Foi muito soberano mesmo no começo dos tempos este cortado. Burro não entrava em seus pastos. Só porque burro não pega perto.* Porém já hoje há quem trate os burros como cavalo. O que é uma distinção.
*Burro não pega perto é expressão pantaneira. Nas lides de campear o pantaneiro usa o cavalo, que é veloz e alcança a rês desgarrada rapidamente. O cavalo pega perto. Mas o burro, não sendo veloz, alcança longe a rês desgarrada. Por isso se diz que o burro não pega perto. (N. do A.)
Manoel de Barros, o poeta do Pantanal, nos fala sobre como tudo começou por aquelas bandas. Este texto foi extraído do "Livro das Pré-Coisas", Editora Record - Rio de Janeiro, 1985, pág. 37