Popularidade para impulsionar mudanças
Os desafios que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfrentará para ampliar o mercado, aprovar as reformas tributária e previdenciária, derrotar o desemprego, a fome e dar um basta na violência que apavora a população começam a aparecer. Os oposicionistas fazem cobranças e o surpreendente clima de confiança depositado no novo governo já mostra sinais de queda.
    Na avaliação do economista e professor da Universidade de Brasília (UnB), Décio Garcia Munhoz, os governos reformistas que sucedem administrações que tiveram grande apoio internacional e se endividaram, dentro do neoliberalismo, são cercados por exigências internacionais e obrigados a tomar medidas impopulares.      “Não é hora de contrapor, temos que dar apoio para o novo governo não se tornar refém da especulação internacional e do capital estrangeiro. As medidas impopulares desgastam a política interna e obriga o País a fazer concessões externas crescentes”, disse Munhoz no Seminário da Reforma da Previdência, realizado no dia 18 de fevereiro na Câmara dos Deputados.
    O governo decidiu cortar os gastos deste ano em cerca de R$ 14 bilhões para garantir o cumprimento da nova meta de superávit primário (receitas menos despesas, excluído o pagamento de juros) de 4,25% do PIB e para corrigir um erro de cálculo do governo anterior. Reiterando que os gastos sociais não seriam afetados, o Palácio do Planalto justificou a medida dizendo que a administração de Fernando Henrique Cardoso subestimou em quase R$ 9 bilhões as despesas com encargos e com gastos previdenciários. Além dos cortes no Orçamento, o governo resolveu aumentar o depósito compulsório dos bancos (enxugamento de recursos) e a taxa básica de juros (Selic) sofreu duas altas consecutivas, chegando a 26,5%.
    As medidas, consideradas necessárias para a manutenção da estabilidade, foram vistas com bons olhos pelo mercado financeiro. O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, concorda que a elevação da taxa Selic atrapalha o crescimento econômico e disse que, para resolver o problema, o governo está disposto a alterar a legislação de falências, o que reduziria os juros futuramente.
    O líder do governo na Câmara, Aldo Rebelo (PC do B-SP), explica que, no caso específico do Brasil não há, atualmente, outro modo de promover a queda na taxa de juros, condição essencial para a retomada do crescimento econômico e a geração de empregos, sem reduzir os gastos públicos. A outra alternativa possível para eliminar o déficit público, de acordo com o líder, seria aumentar os impostos. “Mas a sociedade iria rejeitar, uma vez que o governo anterior já elevou além do razoável a carga bruta de impostos em relação ao PIB”, completa.
    A oposição critica as ações do governo, mas não entra em um consenso. Segundo o líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio (AM), os primeiros sessenta dias do governo Lula têm sido marcados por mudanças profundas de posicionamentos políticos e ideológicos. “Aquela oposição raivosa que o PT fazia ao governo Fernando Henrique Cardoso deu lugar a um governo que no macroeconômico, no essencial das políticas econômicas, faz exatamente tudo aquilo que o ex-presidente e o ex-ministro Pedro Malan (Fazenda) recomendavam, faziam e executavam”. Já o vice-líder Romero Jucá (PSDB-RR), afirma que o governo está se estruturando, mas acha que essas medidas criam uma preocupação em relação ao desemprego e a recessão econômica. “A população vai enfrentar dificuldades”, alerta Jucá.   
    O deputado Orlando Desconsi (PT-RS) concorda que existe uma certa lentidão por parte do governo na área econômica. “Mas compreendemos os motivos em razão da fragilidade que o país se encontra hoje. O país busca reabrir crédito internacional, busca o equilíbrio para poder aprofundar a execução do programa de governo. Não sou favorável ao aumento da taxa de juros, aos cortes. Mas é uma irresponsabilidade não se fazer corte no Orçamento quando se têm contas a pagar herdadas do governo de Fernando Henrique Cardoso. O ex- presidente recebeu, quando assumiu a Presidência, R$ 3 bilhões de déficit. O governo Lula recebeu R$ 23 bilhões. Com o déficit maior era inevitável os cortes nesse momento, porém se a economia der respostas acredito que nós podemos rever essa questão”, conta o deputado.
    O líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros (AL), afirmou que não vai elogiar o aumento dos juros, mas acha que diante do quadro nacional e internacional (iminência de um ataque americano no Oriente Médio), a medida é necessária. O aumento do superávit primário, no entanto, é uma das preocupações do líder peemedebista. “O governo anterior fez um esforço para não chegar a 4%. Isso pode provocar um arrocho maior e afetar a área social”, disse.
    Para acompanhar de perto os problemas sociais brasileiros o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou decreto criando os novos Ministérios das Cidades, da Assistência e Promoção Social e da Segurança Alimentar. Este último Ministério é o responsável pelo carro-chefe do governo de combate à fome. “Se ao final do meu mandato cada brasileiro puder se alimentar três vezes ao dia, terei realizado a missão de minha vida”, disse o presidente anunciando a guerra contra a miséria.  O programa Fome Zero tem estratégias de curto e longo prazo. Nos quatro anos de mandato o alvo são 9,3 milhões de famílias com renda mensal de R$ 180. O auxílio virá por meio de cupons de alimentação (cartões magnéticos ou tíquetes) que só poderão ser utilizados em locais cadastrados. Os cupons variam entre R$ 50 e R$ 150 dependendo do número de filhos por família. Também serão distribuídas cestas básicas emergenciais para vítimas da reforma agrária e serão implementados os programas de alimentação do trabalhador, combate à desnutrição maternal-infantil, educação alimentar e aperfeiçoamento da merenda escolar.
    O ministro da Secretaria de Segurança Alimentar, José Graziano, informou que o Orçamento Geral da União já prevê a liberação de R$ 1,8 bilhão, aos quais serão acrescidas outras fontes de recursos, como Fundo de Combate à Pobreza, que dispõe de aproximadamente R$ 5 bilhões. Além disso, o governo espera completar o volume necessário para implementar o Fome Zero nos próximos anos com doações de entidades nacionais e internacionais.
    “Essa é uma grande boa intenção, a prioridade do governo deve ser acabar com a fome, deve ser melhorar a inclusão social. Mas o carro-chefe do governo ainda não andou, o carro-chefe está parado. O programa Fome Zero até agora distribuiu 500 bolsas de R$ 50, precisa se fazer muito mais do que isso. É claro que está se estruturando, que está levantando o tema, envolvendo a sociedade, tudo isso a gente entende. Mas enquanto não for incluído efetivamente milhões de pessoas nesse programa, ele será uma boa proposta”, diz Jucá.
    O governo considera que o programa ainda não começou a funcionar e alega que muitos dos novos responsáveis pelas diversas áreas estão tomando pé da situação em suas respectivas pastas. “Decididamente, não é justo, a esta altura, fazer cobranças desse tipo. O programa Fome Zero é uma grande iniciativa, principalmente por chamar a atenção para as enormes desigualdades existentes no Brasil. Que se queira discutir se a forma de implementação do programa é a mais adequada se haveria outras formas de fazê-lo acho válido e saudável, afinal o governo não é o dono da verdade”, afirma o líder Aldo Rebelo.
    Outras 14 medidas, consideradas emergenciais pelo governo, foram divulgadas no mesmo dia em que o Executivo anunciou o contingenciamento nos cofres públicos. A criação, no próximo dia 21 de março, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial o aumento em 10% do contingente da Polícia Rodoviária Federal a homologação de áreas indígenas demarcadas nos estados do Rio Grande do Sul, Acre, Rondônia e Mato Grosso do Sul e a ampliação das áreas no Amazonas a desapropriação de 203 mil hectares improdutivos em 17 estados para fins de reforma agrária a redução de 1,65% para 0,65% na cobrança do PIS pago pelas cooperativas a autorização para o Ministério da Fazenda fazer convênios com bancos públicos para facilitar a compra direta de títulos do Tesouro Nacional por pessoas físicas a elevação do limite individual de financiamento para o plantio do milho e do sorgo a implementação de uma política de preço mínimo para o leite a ampliação do número de bolsas de estudos concedidas pelo CNPq em 9%   a instalação, até o final de 2003, de 4,2 mil terminais de computadores em 3,8 mil agências dos Correios a abertura de  licitação para construir 1.672 quilômetros de linhas de transmissão de energia e a criação de um grupo de trabalho, coordenado pelo Ministério da Integração Nacional, para recriação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). O Palácio do Planalto destacou que as medidas anunciadas não prejudicarão as prioridades estruturais do governo.
    Sobre as reformas previdenciária e judiciária, o Executivo está cauteloso, mas promete enviar as propostas ao Congresso Nacional até o final deste semestre. O governo diz que não vai fazer reformas sem que haja consenso e pretende ouvir vários segmentos da sociedade. Para isso, criou o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social para tratar das reformas. O conselho, que já teve sua primeira reunião no mês passado, conta com 82 integrantes e servirá de interlocutor da sociedade civil.
    O líder do PMDB, senador Renan Calheiros, diz que as reformas devem ser agilizadas, pois é necessário aproveitar o capital político, medido pela popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para aprovar as reformas. “Como a economia brasileira passa por uma situação ruim e o cenário internacional também não vai bem, o governo tende a perder popularidade”, afirmou.
    Um mês a mais ou a menos, na opinião de Rebelo, não vai inviabilizar a aprovação das reformas. “Não acho que haja uma sangria desatada a ponto de obrigar o governo a enviar as propostas não suficientemente amadurecidas para depois ter de retirá-las, retificá-las,  refazê-las, reenviá-las. Isso sim causaria desconfiança. Além disso, quem votou no Lula para presidente não o fez esperando que resolvesse tudo em três meses, mesmo porque ele nunca prometeu isso. Foi um voto de confiança para quatro anos não creio que essa energia se esgote tão rapidamente, disse o líder”.
    A violência, outra questão polêmica e que exige ações imediatas, assustou novamente a população brasileira às vésperas do Carnaval. No Rio de Janeiro, comerciantes fecharam as portas, bandidos queimaram e depredaram vários ônibus. O governo então resolveu declarar guerra ao narcotráfico. Pediu a transferência provisória do traficante Fernandinho Beira-Mar para São Paulo, cedeu homens das Forças Armadas e, entre outras medidas, anunciou a construção de cinco presídios de segurança máxima, o primeiro deles será construído em Brasília.
    Para que crises como esta não voltam a se repetir o governo federal pretende atender os anseios da sociedade reestruturando o Plano Nacional de Segurança Pública. Um pacote de medidas, em especial de combate ao crime organizado, deve ser divulgado até o final de abril. “Espera-se, com este pacote, tornar mais efetiva a ação repressiva de combate ao crime. É preciso ter em conta que estamos diante de um fenômeno novo que vai muito além das transgressões comuns à lei que ocorrem em qualquer sociedade Não se trata de uma guerra, no sentido convencional, os bandidos dispõem de todo um sistema logístico, têm influência e ramificações no próprio aparelho de Estado, estão presentes nos três Poderes da República. Seria ingenuidade achar que se trata apenas de um problema de ordem social provocado pela pobreza. É lógico que a miséria, o desemprego, a ausência do Estado através dos serviços públicos é um terreno fértil para que esse tipo de enclave prospere”, informa o líder Aldo Rebelo.
    Quando o assunto é a participação do PMDB no governo, o líder Renan Calheiros cobra uma posição do PT em relação à legenda, sem discutir cargos. “O PT errou em dezembro, quando tinha que trazer o partido para a base aliada. O PT tem que resolver o que vai fazer com o PMDB sem discutir cargos. Nós queremos dividir responsabilidades”. Segundo o líder peemedebista, a última reunião da Executiva estabeleceu um prazo até o próximo dia 20 de março para que os petistas aprovem a proposta de congestão, ou seja, para que os dois partidos possam realizar um trabalho conjunto.   
    O líder do governo na Câmara afirma que não vê problema se o acordo com o PMDB tiver que passar pela participação na atual administração, inclusive ocupando algum Ministério. Mas o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, já sinalizou que uma reforma ministerial é inviável no momento. Mesmo sem cargos no primeiro escalão, o deputado Aldo Rebelo acredita que os peemedebistas irão ajudar o PT a governar. “O PMDB ´ um partido de grande importância na vida política brasileira e já esteve à frente de importantes transformações políticas e sociais no Brasil, como a campanha das Diretas Já e a eleição de Tancredo Neves abriga quadros políticos honrados e competentes que podem contribuir muito com o governo Lula. Além disso, por que quem apóia não pode ajudar a governar?”. 
    Confiança para valorizar o real, conter o retorno da inflação e o baixo crescimento econômico dos últimos anos. Essa é a palavra-chave para amadurecer as boas propostas do governo Lula. A previsão para o ano de 2003 é que seja um ano de transição já que os desafios são grandes. O carisma do presidente Luiz Inácio Lula da Silva será decisivo para convencer a população que os resultados efetivos só aparecerão nos próximos anos. A postura do presidente segue este caminho. Segundo o líder do governo na Câmara, o presidente Lula quer conduzir um processo de mudança de forma tranquila, sem sobressaltos e concessões que não se sustentem no longo prazo.