Previdência Social
Estudo revela que distorções estatísticas e interesses econômicos estão por trás dos debates sobre a nova reforma
Uma nova reforma da previdência começa a ser discutida nos meios políticos e empresariais, às vésperas de mais um processo eleitoral. Um debate que despreza os interesses e as necessidades de aproximadamente 40 milhões de pessoas dependentes do sistema previdenciário nacional. Na pauta dos debates, o interesse passa, quase que exclusivamente, pela necessidade de redução do chamado "déficit previdenciário", apontado por muitos como um dos maiores problemas do setor público. Mas há quem discorde desse entendimento.
Para analisar de perto essa situação, a professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Denise Gentil, que finaliza sua tese de doutorado sobre o tema, se debruçou sobre os dados da Previdência Social e afirma que por trás da chamada "crise da previdência" existem fortes interesses econômicos. Ela diz que o déficit, na verdade, não passa de manipulação estatística do Governo. "Esse debate hoje passa longe da seguridade social", acrescenta.
Segundo a pesquisadora, os dados do Ministério da Previdência Social revelam uma grave distorção na forma de calcular o financiamento da Previdência. Em sua pesquisa, Denise Gentil mostra que a soma dos recursos do saldo previdenciário não inclui todas as receitas que contribuem para a totalidade do financiamento. De acordo com ela, o saldo só é negativo porque leva em consideração apenas as receitas de contribuição ao INSS do empregador e dos trabalhadores. Mas, na verdade, a conta deveria incluir no resultado final a soma das receitas da CPMF, CSLL e COFINS, que, se fossem levadas em consideração, gerariam um superávit de R$ 8,2 bilhões na Previdência. "Os recursos da Previdência estão sendo retirados e aplicados no orçamento da União, que está legalmente autorizada a retirar 20% dos impostos e das contribuições da seguridade social para aplicar livremente em qualquer tipo de despesa. Não é difícil perceber que esse discurso de falência faz parte de uma retórica que pretende destinar uma fatia cada vez maior do orçamento público para fora da seguridade social", ressalta.
Todo o discurso do déficit da previdência pública, segundo Denise Gentil, está ligado ao interesse desses grupos econômicos na privatização do sistema, o que poderia liberar recursos públicos vinculados hoje a gastos sociais. "A idéia de que há um déficit é tão massacrante na mídia, que aqueles que defendem uma reforma na Previdência propõem uma reforma baseada no desmonte de direitos. A dívida do Governo com a classe trabalhadora foi esquecida", critica.
Em entrevista à Tributus, a pesquisadora da UFRJ fala do seu estudo sobre o sistema previdenciário e da suposta crise que está afetando a Previdência Social.
TRIBUTU$ - A senhora concluiu um estudo sobre o sistema previdenciário nacional. Quais foram as principais conclusões? O que motivou essa pesquisa e o que mais a surpreendeu durante o trabalho?
Denise Gentil - Escrevi um artigo no ano passado e agora estou em fase de conclusão de minha tese de doutorado sobre esse tema da seguridade social. Nos dois trabalhos, fiz uma análise da situação financeira da seguridade social e, particularmente, do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). O que mais me motiva a realizar este tipo de estudo é a grande importância que tem o sistema de seguridade brasileiro como base de um sistema de proteção social, com amplo potencial para transformar-se num sistema verdadeiramente universal e redistributivo. Este sistema foi um marco histórico nas conquistas por direitos sociais que vieram após o regime militar, impulsionados na luta pelo restabelecimento da democracia. Naquele instante, houve a institucionalização de um pacto social que implicou na acentuada participação do Estado na promoção de benefícios sociais de forma a proporcionar padrões de vida mínimos à população. Qualquer política de redistribuição de renda e de combate a pobreza em nosso País tem que passar pelo fortalecimento e melhoria do sistema de seguridade social.
Em minhas pesquisas chego à conclusão de que este sistema de seguridade social brasileiro, composto pelos setores de saúde, assistência social e previdência social, é um sistema financeiramente sustentável. Mas não apenas isso. Concluo ainda que o RGPS é também financeiramente sustentável, o que contraria o que tem sido dito ao longo dos anos à população, que se habituou a ouvir que há uma grande crise nesses sistemas e que a baixa qualidade dos serviços está associada à carência de recursos para atender essas áreas. O sistema de seguridade social está apoiado em receitas de contribuições definidas pela Constituição Federal de 1988 que têm crescido satisfatoriamente nos últimos anos, o que permitiu ao sistema não apenas cobrir suas despesas (que também foram crescentes), mas ainda gerar um superávit de magnitude considerável. Este superávit que precisaria ser investido na ampliação do atendimento e em melhorias do sistema tem sido, entretanto, empregado em outros fins, em outras despesas do orçamento fiscal da União, escolhidas por critérios e decisões do Governo. Meus cálculos são de que, em 2004, a seguridade social gerou um superávit superior a R$ 45 bilhões. Uma segunda conclusão que considero da maior importância é que o Governo retira recursos da seguridade social para além do que foi legalmente autorizado a fazê-lo pelo mecanismo da Desvinculação das Receitas da União (DRU). Este mecanismo autoriza o Governo a desvincular apenas 20% das receitas de contribuições sociais para usar em outros gastos. Mas há pelo menos cinco anos, o que está ocorrendo é o destino de mais do que os 20% legalmente permitidos para despesas que o Governo escolhe realizar a seu critério. Pelos dados levantados, e pela metodologia que adotei em meu trabalho, concluo que o Governo empregou no ano de 2004 mais de R$ 20 bilhões fora do orçamento da seguridade social, portanto, de forma contrária ao que determina a Constituição Federal, que vincula expressamente determinadas receitas de contribuições sociais aos gastos em saúde, assistência social e previdência. Logo, não há crise financeira no sistema de seguridade social e, por conseqüência, também não há nenhuma catástrofe financeira ameaçando o RGPS.
TRIBUTU$ - É possível determinar quando a Previdência Social passou a ser "um problema" para as finanças públicas e, principalmente, o que gerou a "dita" crise?
Denise Gentil - Por razões de ordem política e também por desconhecimento do sistema que havia sido criado através da Constituição de 1988, a seguridade social passou a ser um problema logo no ano seguinte em que foi criada. O sistema passou a ser esfacelado, aviltado na sua concepção. Aos poucos, a noção de seguridade foi sendo substituída pela noção de seguro, o que é um retrocesso gigantesco dadas as nossas condições de desigualdade social e de pobreza. Mas, quero dizer clara e expressamente que não concordo que a seguridade tenha sido, em algum momento, um problema para as finanças públicas do país. A ortodoxia que reinou nas décadas de 80 e 90 na política econômica nacional (e que ainda domina esse espaço público neste início de século) interpretava que o déficit público era a causa da inflação. Mas os anos 90 e pós-Plano Real são o contra-exemplo dessa tese. A inflação caiu, ficou estável em níveis relativamente baixos e, no entanto, o déficit nominal bateu nos 8% do PIB em 1998. Já está ficando bastante óbvio para a opinião pública de que o déficit público brasileiro tem sua causa nas elevadíssimas taxas de juros e que, portanto, é a política monetária que prejudica a gestão do orçamento público e não o contrário.
Feita essa ressalva importantíssima, é preciso acrescentar que, pela análise do fluxo de caixa do INSS é possível constatar que ali há duas informações relevantes: uma é a do saldo previdenciário e a outra é a do saldo operacional da Previdência. O que tenho feito ultimamente é chamar atenção para o fato de que, o que ficou conhecido como déficit da Previdência é, na verdade, o saldo previdenciário negativo, ou seja, o resultado obtido da soma das receitas de contribuições ao INSS dos empregadores e trabalhadores, deduzida dos benefícios previdenciários. Divulga-se, por exemplo, com base nesse critério, que o déficit previdenciário, em 2004, foi de R$ 32 bilhões e em 2005, de R$ 37 bilhões. Entretanto, este cálculo não pode levar a conclusões definitivas sobre o sistema previdenciário. O tal saldo previdenciário negativo deixa de computar recursos significativos provenientes da COFINS, CPMF e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, que são receitas do sistema e que, inclusive, estão demonstradas no fluxo de caixa do INSS. Se for computada a totalidade de recursos da Previdência e deduzida a despesa total, inclusive os gastos administrativos com pessoal e custeio, bem como outros gastos assistenciais, o resultado apurado será um superávit operacional de R$ 8,26 bilhões em 2004 e um superávit de R$ 921 milhões em 2005.
TRIBUTU$ - O que há de verdade na tão discutida crise da Previdência? Existem interesses pouco claros nesse debate?
Denise Gentil - Não defendo a idéia de que há crise na Previdência Social. Não faltam recursos para o sistema, muito pelo contrário. Entretanto, a constatação de que o RGPS é financeiramente solvente não impede que se apontem limitações, falhas específicas e deformações que o sistema possui e que podem ser corrigidas. É possível fazer, além da crítica externa, também uma crítica por dentro do sistema a partir da sua estrutura de contribuições e concessão de benefícios, e analisar as reformas recentes do sistema. Mas, preliminarmente, é preciso mencionar que não há uma só direção para a elaboração de uma resposta a esse tema. As análises das distorções presentes no sistema de Previdência Social estão influenciadas pelas perspectivas política e teórica diferenciadas acerca da importância e do significado de um sistema de Previdência Social no mundo capitalista. Normalmente, as críticas internas ao sistema são feitas com o objetivo de apontar as falhas existentes (muitas delas falsas) que são responsáveis pelo significativo peso fiscal do sistema previdenciário público em regime de repartição. O diagnóstico já é feito com a intenção de demonstrar que os gastos são excessivos. Por conseqüência, as metas propostas para a transformação do sistema visam reduzir o peso fiscal do sistema previdenciário público em repartição e ampliar a acumulação de recursos financeiros nos esquemas privados complementares de capitalização. Deseja-se, segundo os defensores desta perspectiva, trocar déficit público por poupança privada e diversificação do mercado de capitais, que supostamente seriam capazes de promover o crescimento econômico, o que é uma idéia muito polêmica e sem grandes comprovações no mundo real. Entretanto, qualquer que seja a justificativa dada, o certo é que as propostas de reformulação do sistema implicam em aumentar a participação do setor privado através da acumulação de recursos nos fundos de pensão complementar e reduzir relativamente o que é pago pelo setor público. As críticas ao sistema público, normalmente, não apontam na direção de buscar aumentar a sua capacidade de gerar uma rede de proteção social maior para toda a população. Este seria o caminho do pensamento e da investigação se o diagnóstico fosse feito levando-se em consideração a necessidade de intervenção do Estado num país com elevado número de pessoas em condições de pobreza e com grandes desníveis sociais.
TRIBUTU$ - Até onde a crise é estrutural? E o debate político, onde começa? Falando em política, existe um movimento crescendo em vários setores de que é preciso fazer uma nova reforma da previdência. É possível prever o que mais vem por aí? Qual será o futuro do sistema previdenciário brasileiro?
Denise Gentil - O atual ministro da Previdência já declarou que não acha necessário fazer uma nova reforma da Previdência e que os ajustes internos estão sendo feitos e estão gerando bons resultados em termos de redução de custos e aumento de arrecadação. Ao assumir, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, também disse que o sistema não precisa de nenhuma reforma neste momento e que ainda está sob o efeito das duas últimas grandes reformas que foram feitas: uma no governo FHC e outra no regime próprio dos servidores públicos no Governo Lula. Ou seja, parece já existir um certo consenso de que essa crise alarmante não é bem assim tão grave e que, por enquanto, tudo ficará como está. O Governo Lula tem promovido algumas mudanças na estrutura interna da Previdência, como por exemplo, a fusão da Secretaria da Receita Previdenciária com a Receita Federal. Foi feito o recadastramento dos beneficiários, há um esforço concreto para a cobrança da dívida ativa, embora muito ainda possa ser feito nesse sentido. Essas medidas podem trazer bons impactos imediatos para a Previdência.
Para o futuro, eu diria que um dos principais ajustes internos que precisam ser feitos – para ficar apenas em um – é corrigir a existência de regimes previdenciários diferenciados tratados no interior do sistema de seguridade social. A Constituição de 1988 criou dois sistemas: um deles é o sistema de seguridade social universal para todos os cidadãos, com orçamento próprio; o outro é um sistema especial para o funcionalismo público, não universal. São dois sistemas distintos. A previdência pública que funciona em regime de repartição é atribuição do INSS e pertence à seguridade social. Os ativos e inativos do serviço público (da Câmara, do Senado, do Ministério Público etc.) devem ficar a cargo do orçamento fiscal administrado pelo Tesouro Nacional.