Brasil perde mais de US$ 2,4 bi com biopirataria
TCU identifica falhas no controle de fronteira e destaca atuação da Receita Federal
Os prejuízos do Brasil com a biopirataria podem passar de US$ 2,4 bilhões ao ano. Além da perda do material genético, a população ainda é obrigada a pagar royalties por medicamentos e outros produtos desenvolvidos com substâncias extraídas ilegalmente da biodiversidade brasileira. A falta de controle da diversidade genética levou o Tribunal de Contas da União (TCU) a realizar uma auditoria que detectou falhas nos instrumentos de controle usados pelo Governo Federal para combater a biopirataria e a entrada de pragas invasoras no País.
O ministro Benjamin Zymler, relator do processo, apontou que atualmente não existe fiscalização na fronteira Brasil-Colômbia-Peru, especialmente na região do município de Tabatinga (AM), o que torna a área vulnerável à entrada de pragas, que podem gerar prejuízos à agricultura nacional e impedem o combate à biopirataria.
De acordo com a fiscalização, é mínima a presença de agentes do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) nos aeroportos brasileiros e a vistoria de bagagens e passageiros só ocorre quando “há interesse tributário da Receita Federal que, ao detectar algum material genético, solicita a ajuda do Ibama”. Ainda de acordo com o relatório, “por ser o órgão mais atuante, com maior quantidade de postos e servidores nos aeroportos, a Secretaria da Receita Federal, indiretamente, contribui para a fiscalização do fluxo indevido de espécies e material genético”, descreve. A Auditoria constatou também que a atuação da Polícia Federal tem sido prejudicada pela ausência de previsão legal do crime de biopirataria e impossibilidade de punir os infratores. Além disso, a PF enfrenta dificuldades devido à falta de funcionários, de equipamentos básicos e à deficiência no fluxo de informações entre as unidades.
O Tribunal também considerou insuficientes as ações de incentivo ao uso sustentável da biodiversidade brasileira. Entre as falhas apontadas está a ausência de obrigatoriedade na concessão de patentes, de informação da origem do material e da falta de exigência na comprovação legal de obtenção do recurso, o que pode provocar prejuízos ainda maiores ao País. De acordo com o relatório, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) não estaria cumprindo as determinações do Artigo 31 da Medida Provisória 2186-16/2001 que exige a informação da origem do material genético ou do conhecimento tradicional utilizado no processo ou produto sobre o qual se requer a concessão de patente. O INPI não cumpre a determinação por considerar que o Artigo 31 não é auto-executável, ou seja, deveria ter sido regulamentado pelo Poder Executivo. Esse entendimento acabou gerando divergências com o Ministério do Meio Ambiente (MMA), cujos técnicos entendem que a concessão do direito de propriedade industrial ficou condicionada ao cumprimento da MP. A discussão vem sendo travada no País desde 2001, mas havia perdido força até que o TCU solicitou à Advocacia Geral da União (AGU) um parecer consolidando o entendimento sobre o tema. A Advocacia já recebeu o parecer do TCU, mas ainda não concluiu a avaliação, que não tem prazo para ser encerrada. No relatório, o TCU, além de solicitar a pacificação do entendimento a respeito da aplicação da norma, alerta para os prejuízos que podem ser gerados ao País por conta dessa indefinição, como o registro de patentes de substâncias nativas do Brasil sem o devido recolhimento de royalties, e o estímulo à biopirataria. O presidente do INPI, Roberto Jaguaribe, acredita em uma solução para o impasse ainda este ano. Segundo ele, um grupo de trabalho formado por representantes dos dois órgãos está tratando da questão.
O secretário da 4ª Secretária de Controle Externo do TCU, Ismar Barbosa Cruz, lembra que o relatório aprovado pelos ministros do TCU trouxe cerca de 20 determinações e recomendações de melhorias para o controle da biodiversidade brasileira. O tribunal determinou que a Infraero adote as medidades necessárias para corrigir as falhas nos procedimentos de manuseio dos pallets de madeira nos aeroportos para reduzir os riscos de contaminação. Determinou também que os ministérios do Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio definam o plano estratégico para o Centro de Biotecnologia da Amazônia. O TCU ainda recomendou à Secretaria de Defesa e Agropecuária que instale postos de fiscalização em Tabatinga, com as condições de segurança necessárias. O tribunal também alertou para a falta de controle da exportação de animais aquáticos vivos que atinge o montante anual de R$ 1 milhão. Os fiscais, conforme destaca o relatório, não estão capacitados para identificar as espécies, não têm conhecimentos dos valores e acabam sendo enganados por exportadores.
Ismar Barbosa explica que, após a conclusão da auditoria, o TCU determina novas verificações periódicas que avaliam se as medidas aprovadas estão sendo implementadas. A prioridade, afirma Cruz, é dada para as determinações e recomendações que possuem prazo para ser implementadas. O monitoramento pode durar até 24 meses, dependendo da natureza da operação. O descumprimento das determinações do tribunal pode gerar multas de até R$ 30 mil e sansões ao responsável pelo órgão. Ao final desse processo, o TCU também faz uma avaliação do impacto dos resultados e das medidas implementadas. Ismar Barbosa explica que o TCU deve ampliar sua atuação na defesa da biodiversidade. Segundo ele, um trabalho está sendo realizado por tribunais de contas e organismos de controle de vários países para justamente estabelecer mecanismos similares de avaliação dos instrumentos de controle da biodiversidade. “A intenção é estimular fiscalizações ambientais em todo o mundo. A área de biodiversidade foi apontada como prioridade para o período de 2005 a 2007”, disse.
Divergência entre INPI e MMA atrasa análise de novas patentes
O levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) mostra a divergência entre o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) e o Ministério do Meio Ambiente (MMA), isso atrasou a produção de novos medicamentos fabricados a partir de composto natural para tratamento de diabetes, câncer e tratamento alternativo anti-hiv (AIDS). Na relação de 110 pedidos relacionados a material genético encaminhados ao INPI, apenas 18 apresentavam a indicação, ainda assim parcial do local onde é encontrada a substância e somente 2 indicavam o local correto da coleta.
Entre as solicitações estão a produção de medicamento fitoterápico para o mal de alzheimer, o uso de plantas na produção de remédios para cólicas e cálculos renais, a fava para cura de veneno de cobra, o processo para obtenção de cristais de veneno de cobras, as substâncias à base de veneno de escorpião, as medicações a partir da babosa e até pomada de uso curativo feita com repolho. Todos os pedidos de registro de patentes estão nessa relação que envolvem tanto o acesso a recursos genéticos quanto os conhecimentos tradicionais.
A mudança no processo de concessão desse tipo específico de patente está sendo discutida em várias esferas do governo e poderá ser implementada ainda este ano. A medida também eliminaria uma distorção entre a política interna de registro de patente e as alegações do governo brasileiro que, por meio do Ministério das Relações Exteriores (MRE) pressiona a Organização Mundial do Comércio (OMC) junto com outras nações consideradas as maiores reservas genéticas do mundo. A intenção é adequar o Tratado sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) aos dispositivos da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), da qual o Brasil é signatário, e que exige a comprovação de legalidade de acesso e, principalmente, estabelece mecanismos para a repartição dos benefícios obtidos com as patentes.
Esse é o primeiro passo para que se institua no País um regime efetivo de compensação pelo uso dos recursos naturais.
O diretor do Departamento do Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente, Eduardo Vélez Martin, acredita que esse impasse está próximo de uma solução. Segundo ele, o Brasil precisa definir essa questão internamente, até para manter a coerência com as ações que estão sendo tomadas em âmbito externo, de defesa da obrigatoriedade da declaração de origem e de partilha dos benefícios. A mudança , a princípio, pode gerar aumento de custo para empresas que operam com bioprospecção, mas esse custo será compensado, segundo ele, pela melhora da conservação natural. “Além de ser uma questão de justiça com o País e com as comunidades tradicionais que usam essas substâncias e têm esse conhecimento tradicional, esse reconhecimento também demonstra, por parte das empresas, compromisso socioambiental”, defende.
O assessor de políticas públicas do ISA, Henry de Novion, também defende a aplicação do Artigo 31 da MP. Um dos responsáveis pelo estudo analisou os pedidos de patentes encaminhados ao INPI e acredita ser preciso reforçar os mecanismos de controle sobre essas solicitações. Ele ressalta que a bioprospecção deve crescer nos próximos anos e o Brasil, se não tomar providências, poderá ser ainda mais prejudicado pela biopirataria. O Brasil, destaca Novion, pode ser um dos principais provedores de recursos genéticos, mas, se não houver controle, além do prejuízo imediato com a extração indevida dessas substâncias, o País poderá, como ocorreu em alguns casos, ser obrigado a pagar royalties para adquirir medicamentos feitos com material genético encontrado em território nacional, ou produzidos a partir do conhecimento de povos indígenas e comunidades que vivem nas florestas. Ele alerta ainda que esse desinteresse pode, inclusive, induzir formas indevidas de exploração comercial de florestas nativas, como a extração de madeira. “A declaração de origem e a partilha dos benefícios, ao contrário, podem estimular a participação dessas comunidades, o que facilitará a bioprospecção e a descoberta de produtos”, defende.