Variações sobre a reforma tributária
Everardo Maciel*
A reabertura dos trabalhos no Congresso Nacional trará de volta, inevitavelmente, o debate sobre o projeto Mabel de reforma tributária – versão degradada da já originalmente ruim proposta do Poder Executivo.
O projeto oferece um vasto campo para críticas, desde as que assinalam inconsistências até as que apontam erros conceituais, daí passando para as que ressaltam a inoportunidade do veículo normativo ou do momento para tratar da questão ante a gravidade da presente crise econômica. Exploremos dois aspectos apenas do projeto: a via constitucional e a simplificação.
Padecemos de uma crônica e danosa predileção por soluções constitucionais para as questões tributárias. Em decorrência, têm-se modelos inflexíveis que tornam inviável o exercício de política tributária, além de uma profusão de demandas judiciais que produzem litígios colossais entre o fisco e o contribuinte, em desfavor da segurança jurídica e do planejamento dos investimentos privados.
Não é necessário discorrer sobre os custos políticos para promover alterações constitucionais, inclusive para correção de erros anteriores. Mais grave é constatar que a maior parte dos problemas tributários brasileiros se resolve pela via infraconstitucional. Baltazar Gracián, eminente pensador do século XVII e autor do célebre “Oráculo Manual e a Arte da Prudência, já ensinava: “Não se deve dedicar às coisas mais esforços do que o necessário, para evitar desperdício de saber e energia. O bom falcoeiro usa apenas os pássaros que a caça exige.”
Apenas para argumentar, admitamos que o projeto Mabel prospere. Como iríamos consertar a enorme teia de vinculações e partilhas proposta? Construída empiricamente, ela tornaria ainda mais difícil a gestão orçamentária e geraria uma espécie de contaminação federativa, pois cada problema fiscal da União iria demandar maior extração na conta do contribuinte em virtude da partilha tributária generalizada para entidades subnacionais. Alguém pode avaliar a discussão que se instalaria sobre o dimensionamento da “bolsa ICMS” concebida para compensar perdas dos estados exportadores, por força da instituição de um mítico e desarrazoado princípio do destino?
Pretende a proposta simplificar o sistema tributário. A intenção é louvável. No âmbito tributário, simplificação é a mais relevante demanda contemporânea. Sistemas tributários complexos constituem espaço fértil para sonegação, planejamento tributário abusivo e arbitrariedade fiscal. Não é outra a razão pela qual ganha força, em todo o mundo, o princípio da praticabilidade.
A complexidade do sistema tributário brasileiro reproduz tão-somente nossa complexa realidade. Simplificações pontuais são possíveis e necessárias. Algo mais profundo, todavia, exige repensar o federalismo brasileiro – tarefa árdua e difícil, tanto do ponto de vista técnico quanto político. Por inapetência ou excessiva reverência a um abstrato pacto federativo, a verdade é que inexiste qualquer iniciativa séria para rediscutir o federalismo fiscal.
Esse quadro não constitui idiossincrasia brasileira. Apenas para citar um exemplo, o renomado tributarista Vito Tanzi lembrava que a legislação do imposto de renda americano tem 65 mil páginas (das quais 20 mil representam a contribuição do governo Bush) e 600 modelos distintos de declaração.
Alguns movimentos recentes, no Brasil, caminharam na direção oposta da simplificação. O Simples, instituído no governo FHC, fazia jus a seu nome; o SuperSimples é um primor de complexidade. O PIS/Cofins cumulativo era, de fato, apenas uma espécie de adicional do imposto de renda corporativo. Sua base de cálculo era exatamente a mesma do lucro presumido, regime festejado pelos optantes e invejado pelos que obrigatoriamente se submetem às agruras do lucro real. O PIS/Cofins não-cumulativo é uma manifestação superabundante do caos. Sua legislação converteu-se em território livre para todos os tipos de lobbies e para improvisadas desonerações tributárias.
O projeto Mabel pretende fundir o PIS, a Cofins e o salário-educação em um único imposto, a despeito de, pitorescamente, manter as mesmas destinações originais, como se contribuições fossem. O pretexto é simplificar. É, entretanto, mera estultice proclamar essa tese. PIS e Cofins praticamente em nada diferem. Harmonizar suas respectivas legislações é tarefa que pode ficar a cargo de modestas normas infraconstitucionais.
Simplificar é outra coisa. Seria, por exemplo, reunir aquelas contribuições com o ICMS e o ISS, dando ensejo a um IVA nacional com legislação federal, fiscalização estadual e arrecadação compartilhada entre as entidades federativas. Essa é a proposta que está sendo gestada na Comissão Especial de Reforma Tributária no Senado Federal.
Por ora, melhor faríamos se nos dedicássemos a formular um projeto para enfrentar, com seriedade e realismo, a crise econômica mundial, sem improvisos e fanfarronices. $
* Consultor tributário e ex-secretário da Receita Federal, de 1995 a 2002.