Painel Jurídico
A justiça penal e o serviço público
O palco dos julgamentos dos crimes de repercussão no Brasil há muito tempo mudou seu endereço. Os velhos e ultrapassados tribunais deram lugar aos modernos e digitais estúdios jornalísticos, enquanto os promotores de justiça, outrora patronos das acusações formais, foram substituídos pelos eloquentes e impiedosos jornalistas e sua “liberdade de imprensa”.
E inspirados pelo sucesso que acompanha os novos cavaleiros da justiça, autoridades públicas transformaram suas atribuições em verdadeiras obras cinematográficas, com operações policiais deflagradas sobre cada vez mais holofotes, com armas cada vez maiores e, claro, com cada vez mais presos.
O problema é que a tênue e delicada linha que separa uma “cruzada pela justiça” e uma “caça às bruxas” ficou esquecida por debaixo da poeira dos helicópteros e veículos blindados, ao ponto em que hoje testemunhamos a prisão de servidores públicos por atos absolutamente cotidianos de suas funções.
Aos incrédulos, a verdade: a emissão de uma certidão negativa sem qualquer valor jurídico; a liberdade de dividir o uso de seu computador e senha dentro da repartição; a seleção de passageiros para verificação de bagagem nos aeroportos; o atendimento de um contribuinte cujo domicílio fiscal fica em outra jurisdição; todas estas condutas aparentemente comuns para o dia a dia dos servidores da Receita Federal já levaram servidores para a cadeia.
E se o exagero na “interpretação” destas condutas já nos assusta, não há como descrever então a maneira como procedem à prisão destes funcionários a serviço do próprio Estado. Seja recolhendo-os de madrugada em suas casas ou em frente aos contribuintes e colegas de repartição, a humilhação que sofrem é o preço que se paga pela política do “prender primeiro, perguntar depois”.
E se já falta às autoridades justificativa para prender alguém que por décadas serviu à Administração sem qualquer reserva, o que dizer do uso de algemas? Será possível acreditar que alguém imagina que um servidor público federal, com nível superior e exercendo atividade típica de Estado, pretenderia opor resistência a uma ordem de prisão acompanhada de dezenas de policiais e armas de guerra?
Mas afinal... por quê tantas prisões abusivas?
Parece-nos que a resposta a esta pergunta é tão simples quanto decepcionante. As autoridades públicas simplesmente não compreendem com exatidão as atividades exercidas pelos servidores da Receita Federal, e acabam por não dedicar o tempo necessário para compreendê-las também.
Às autoridades carece o contato com o dia-a-dia dos servidores. Como se espera entender uma ação isolada, sem seu contexto adequado, quando não se compreende a rotina de uma aduana, de um porto ou de uma fronteira? Mais além, como distinguir o que é falta de condições; o que é falta de treinamento; o que é falta de vontade; do que realmente é um ímpeto criminoso?
No final das contas, qualquer deslize do servidor acaba parecendo, aos olhos da Justiça, como um crime. A falta de treinamento ou de condições de trabalho é questão etérea, percebida apenas por quem efetivamente realiza o trabalho, e por tantas vezes confundida com a proclamada ineficiência do serviço público.
Já o descaso, o desinteresse e o descompromisso do servidor com a qualidade de seu trabalho, estes são muito bem detectados pelas autoridades, que se valem destes elementos para exercer tremendo desequilíbrio na balança do julgador em desfavor do acusado.
Mas à própria lei também não resta melhor sorte. A redação imprecisa e às vezes verdadeiramente sem sentido de alguns artigos de nosso ordenamento jurídico leva as autoridades a um problema sério para adequar suas acusações aos fatos que investigaram. E ainda que tais confusões possam provocar a absolvição do servidor no final do processo, nada servirá para remendar a já consumada destruição de sua imagem perante a sociedade.
A título de informação, então, separamos uma breve explicação sobre os crimes mais comuns entre aqueles que costumam ser imputados aos servidores do fisco federal, todos previstos no Código Penal:
Peculato (art. 312) – consiste na conduta do servidor que, no exercício de suas funções, subtrai ou toma posse de bem que não lhe pertença valendo-se do seu cargo. Este crime ainda admite a forma culposa, hipótese na qual o servidor, sem querer, facilita que um terceiro se aproprie de bens públicos.
Alteração indevida em sistemas (arts. 313-A e 313-B) – consiste na conduta do servidor que altera os dados dos sistemas informatizados da Administração em desacordo com os procedimentos necessários.
Excesso de Exação (art. 316, §1º) – consiste na conduta do servidor que exige o pagamento de tributo que sabe não ser devido, ou abusa no meio pelo qual efetua a exigência, gerando humilhação ou dano ao contribuinte.
Corrupção Passiva (art. 317) – consiste na conduta do servidor que solicita ou recebe vantagem indevida em razão do cargo que ocupa. Para a sua consumação, não se exige que o servidor receba, efetivamente, a vantagem (basta solicitar ou aceitar promessa), nem mesmo que o servidor deixe de cumprir com suas obrigações.
Facilitação de Contrabando ou Descaminho (art. 318) – consiste na conduta do servidor que, na obrigação de impedir a prática destes crimes, deixa de combatê-los ou reduz os obstáculos para seus autores. Prevalece o entendimento de que qualquer servidor da Receita (independentemente de lotação) é capaz de praticar este crime, porque dispõe de função institucional de combate ao contrabando e descaminho.
Advocacia Administrativa (art. 321) – consiste na exploração do servidor de seu cargo público para beneficiar particulares ou, no caso, contribuintes. Neste crime o servidor não precisa estar pleiteando alguma vantagem ilegal para o contribuinte, basta estar utilizando do cargo para influenciar a Administração.
Apesar destes esclarecimentos serem extremamente informais e sem maiores preocupações técnicas, servem para ilustrar a semelhança notória entre fatos considerados criminosos pelas autoridades e as práticas corriqueiras em repartições públicas. A mínima distância entre crime e costume, entre ir pra cadeia ou pra casa ao final do dia, acaba nos braços das autoridades policiais e judiciais, quem ultimamente tem dado predileção aos noticiários.
Por fim, encontramos no seio desta discussão a resposta de uma pergunta até então retórica: “Por quê o departamento jurídico do meu sindicato tem interesse em patrocinar a defesa dos filiados envolvidos em operações policiais?”.
Respondemos: por muitas vezes, defender um servidor acusado é muito mais do que simplesmente defender uma pessoa. É defender a liberdade com que os servidores, todos eles, poderão exercer suas atribuições, sem se preocuparem com escutas telefônicas ou com suas próprias liberdades. Ao representar o acusado, então, defende-se o interesse de toda a categoria, a fim de que nenhum outro servidor seja sujeito ao mesmo tipo de constrangimento.
Rafael Nobre Luis
Mestrando em Direito Penal pela PUC/SP
Advogado do Núcleo Jurídico de São Paulo