VALOR ECONÔMICO -SP – 31 de maio de 2011
Artigo - Antonio Delfim Netto
Muitas vezes temos sugerido uma explicação pedestre, quase ingênua, mas sedutora para a organização social hoje predominante no mundo que chamamos de "civilizado". Ela seria produto de uma espécie de seleção natural que o homem encontrou explorando as alternativas para atender a duas necessidades vitais: a sua sobrevivência física combinada com sua liberdade de iniciativa.
Com enorme reducionismo podemos dizer que tal organização depende da construção de um Estado constitucionalmente limitado que incorpora duas instituições que procuram regular-se mutuamente: o "mercado", onde os cidadãos manifestam as suas preferências de consumo material e se organizam de forma eficiente para atendê-las, e a "urna", o processo democrático, onde os cidadãos explicitam suas preferências mais gerais (que transcendem às puramente econômicas) e escolhem o poder incumbente para atendê-las, principalmente aquelas que o "mercado" não pode atender eficientemente (a produção de bens públicos, por exemplo).
Se essa explicação é aceita fica claro que:
1º) não há nenhuma contradição entre o papel do Estado constitucionalmente limitado e o do "mercado", mesmo porque o "mercado" não pode funcionar sem as condições criadas e protegidas pelo Estado;
2º) o "mercado" (desde que regulado) pode resolver com eficiência, pelos sinais que recebe dos consumidores, o problema técnico de "como" produzir e o "que" produzir. Desde os meados do século XIX, entretanto, ficou claro que "para quem produzir" não é um problema puramente técnico, mas político. Ele depende do poder incumbente, isto é, da "urna", através da política fiscal;
3º) o bom funcionamento desse jogo de equilíbrio entre "mercado" e "urna" depende, criticamente, de condições institucionais que impeçam o "mercado", pelo seu poder econômico, de apropriar-se da "urna". É por isso que "democracia" e "mercado" só podem subsistir no longo prazo com uma regulação institucionalmente inteligente e ativa.
Quais são os dois mais graves inconvenientes do "mercado" e que, em princípio, poderiam ser minorados pela ação do Estado? Em primeiro lugar corrigir a tendência do processo competitivo de criar e ampliar as desigualdades entre os cidadãos e, em segundo lugar, diminuir a enorme insegurança devido à tendência dos mercados à flutuação, ou seja, a ameaça permanente ao nível de emprego que pesa sobre e angustia o trabalhador.
Do primeiro temos tratado frequentemente e mostrado as dificuldades do Estado para resolvê-lo. Hoje vamos tentar mostrar que no segundo, ao contrário do que se esperaria, o Estado, através do poder incumbente eleito, tem sido, frequentemente, causa ativa, por omissão, descuido ou irresponsabilidade. Em um trabalho muito interessante feito por técnicos do Fundo Monetário Internacional (Laeven, L-Valencia, F. - "Systemic Banking Crises", W.P. 08/224, November 2008) os autores classificaram as crises econômicas em três categorias: crises bancárias sistêmicas, que atingem o próprio sistema bancário com falência de instituições e dramático aumento da inadimplência; crises cambiais, quando o país sofre intensa desvalorização externa de sua moeda; e crises soberanas, quando o governo declara sua incapacidade de pagar sua dívida. Entre 1970 e 2007 (logo antes da crise que estamos vivendo), eles encontraram: 124 crises bancárias, 208 crises cambiais e 63 crises soberanas. Em muitos casos houve não apenas repetição de crises em alguns países, como crises duplas (26) e triplas (8).
Pois bem. O Estado "salvador", ou melhor, os seus representantes (os governos) ao longo dos 40 anos da análise foram causa, por omissão (falta de regulação) em todas as crises bancárias. Em número substancial delas colocou dinheiro dos contribuintes para resolvê-las! Quanto às crises cambiais, é evidente que os governos, por sua intervenção sobre o câmbio, acabou por torná-las inevitáveis. Quanto às crises soberanas, foram todas produto direto das equivocadas políticas econômicas praticadas pelos governos.
Para salvar a democracia e o mercado precisamos, primeiro, salvar o Estado da irresponsabilidade dos seus governos...
* Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.