VALOR ECONÔMICO -SP – 5 de julho
Coluna: Antonio Delfim Netto
Qualquer que seja a estrutura da produção e qualquer que seja o regime político sob o qual se organizam - desde quando, nômades caçadores e colhedores de frutos no neolítico, transformaram-se, por obra de seu trabalho, nos animais urbanos que são hoje -, os homens foram condicionados pelas leis da termodinâmica: têm de capturar a energia disponível no seu habitat (frutos, caça, madeira etc.) para poder dispersá-la na produção de bens e serviços que atendam às suas crescentes necessidades. Conhecimento cada vez mais seguro mostra que muito cedo grupos vizinhos já exerciam misterioso ritual de troca pacífica de bens e... de DNA, às vezes à força!
O mesmo processo físico se repete hoje. A despeito de toda a sofisticação das instituições, dos enormes avanços civilizatórios e das extraordinárias teorias que explicam o desenvolvimento econômico, cada nação continua a ter de capturar a energia dispersa em seu território (ou importá-la do "vizinho") para consumi-la na produção da sua própria sobrevivência e movimentar a parafernália de "capital" (trabalho congelado do passado) que dispõe para atender às necessidades crescentes de uma população crescente.
Temos de consolidar as políticas fiscal e monetária. O grande avanço reside no fato que a mudança da dimensão demográfica foi sugerindo a busca de mecanismos descentralizados de coordenação (os mercados), capazes de pôr em contato as "necessidades" da demanda com a "capacidade" produtiva de atendê-la. O mesmo processo de seleção "quase natural" foi sugerindo que um Estado suficientemente forte, mas constitucionalmente limitado, ajustava-se melhor para dar "garantia" e controlar o funcionamento mais eficiente dos "mercados".
A experiência mostrou que essa evolução paralela teve um subproduto fundamental: permitiu combinar a eficiência produtiva com a liberdade individual. Ela está longe, entretanto, de ser uma sociedade inclusiva, onde todo cidadão tem a mesma igualdade de oportunidade para realizar o seu potencial.
Trata-se de um processo histórico que está longe de ter esgotado a sua capacidade para a construção de uma sociedade razoavelmente "justa". A história não acabou, a não ser no sentido de que hoje parece inútil prosseguir buscando "curto-circuitos" produzidos por ideias de cérebros peregrinos. Estamos apenas num ponto do desconhecido caminho escondido nas entranhas do futuro tecnológico induzido por ele mesmo e que, por definição, é indecifrável.
O exemplo mais típico é a internet, que está produzindo mudanças profundas na eficiência produtiva e no comportamento dos homens. Seguramente, vão dar mais e melhor flexibilidade às relações entre o trabalho e o capital que o emprega e alterar a organização da sociedade.
Uma coisa parece certa. Para o contínuo aperfeiçoamento do processo civilizatório é preciso que as duas instituições fundamentais, a urna e o mercado, sejam independentes. Tem havido uma erosão dessa independência nos últimos anos, como é exemplo conspícuo os EUA. Entre nós é duvidoso que ela vá aumentar com o financiamento público das campanhas eleitorais ou com o voto em lista. Com a qualidade da nossa organização político-partidária, é possível que a tragédia cresça.
Claramente - ainda que haja riscos produzidos pela miopia popular, que às vezes tenta substituir a "lenta justiça" pela "rápida vingança"- a nova esperança reside nas redes sociais que a cada momento afirmam a sua importância na construção de uma espécie de "democracia direta" que parecia impossível há poucos anos.
O Brasil está em situação melhor do que a maioria dos países, mas é ilusão supor que estejamos protegidos das nossas próprias intempéries e das crises importadas. É ingênua a crença que o modelo agromineral exportador induzido pelo crescimento da China continuará o mesmo nos próximos 20 anos, e que o crescimento do nosso passivo externo nunca será problema devido à magnitude das nossas reservas (elas mesmas voláteis e dependentes da situação internacional).
Temos de consolidar e reafirmar políticas fiscal e monetária inteligentes e conservadoras como as que estamos fazendo. Além disso, é preciso insistir no papel ativo do Estado-indutor na criação de um mercado altamente competitivo internamente e cuidadosamente protegido externamente.
Essas são tarefas do Poder Executivo. Ele só poderá fazê-las com um suporte da sociedade, que lhe permita superar a clara armadilha do Legislativo, que a cada momento comporta-se como se quisesse impor-lhe, em troca do seu voto, um "aparelhamento" lamentável do ponto de vista da competência e da moralidade.
Para enfrentá-lo, o Executivo deve melhorar sua comunicação com a sociedade e profissionalizar o serviço público. Um bom começo é poupar-se, com argumentos mais do que duvidosos, das extravagantes aventuras em que tem metido o tecnicamente competente BNDES. Seus recursos devem ser destinados, como no passado, a facilitar o crescimento do mercado de capitais e acelerar o desenvolvimento pelo estímulo à inovação. Ele não deve ser o "arquivo morto" das ações de operações bem-sucedidas: deve vendê-las para fazer novos recursos! E as malsucedidas (que não são poucas) devem ser executadas e não reanimadas com o oxigênio de novos empréstimos...
O momento é agora. Sob a orientação da presidente, o competente ministro Paulo Bernardo está dando o primeiro passo revolucionário para a criação dos nossos "insurgentes". Os partidos e os políticos não devem equivocar-se: eles vão impor, através de suas redes, a "moralidade" como valor número um para a entrega do seu voto.
* Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento - Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.