Comércio ilegal já chega a 50% dos pontos-de-venda. Evasão, contrabando e falsificação dão prejuízo de bilhões de reais
Inês Garçoni
Pêlo de rato, asas de inseto, pedaços de barbante, plástico e grãos de areia. Não, não é uma receita qualquer de bruxaria. Esses ingredientes estão na composição dos cigarros falsificados e contrabandeados para o Brasil. Milhões de brasileiros não sabem que tragam essas substâncias, tão sofisticadas são as falsificações. A venda de cigarro clandestino não se restringe mais às bancas de camelôs. São maços e maços presentes em quase 50% dos pontos-de-venda do País – padarias, bares, restaurantes, bancas. O contrabando é uma questão de saúde pública, de segurança e de economia para os cofres nacionais. O governo deixa de arrecadar cerca de R$ 1,4 bilhão por ano apenas com os carregamentos que chegam do Paraguai. Além disso, o dinheiro movimentado pela máfia do cigarro, R$ 1,8 bilhão, serve também para financiar o tráfico de drogas e o contrabando de outros produtos. Hoje, o mercado clandestino de cigarros do Brasil é o segundo maior da América Latina, perdendo apenas para o mercado legal do próprio Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco), dos 144 bilhões de unidades comercializadas anualmente por aqui, 46 bilhões têm origem ilegal. Já não é novidade que o cigarro faz mal à saúde, mas cigarro contrabandeado consegue ser pior ainda. Para a saúde e para o bolso dos brasileiros.
A última modalidade de contrabando vem de terras uruguaias. Durante a Operação Nicotina, em 2002, a Polícia Federal prendeu seis brasileiros, entre eles o paranaense João Celso Minosso, que em junho foi condenado a 11 anos de prisão pelos crimes de contrabando, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Minosso articulava a distribuição dos cigarros da Monte Paz, gigante da indústria uruguaia, em terras nacionais. A empresa é líder de vendas por lá, com 75% do mercado interno, e uma das cinco maiores exportadoras do país, segundo dados do Banco da República, do Uruguai. Só no ano passado, enviou para o Paraguai quase cinco bilhões de unidades de cigarros Calvert e Broadway, marcas produzidas apenas para exportação. O Paraguai, por sua vez, não consome internamente estes cigarros. E estranhamente eles são espalhados pelas bancas de ambulantes brasileiros. A CPI da Pirataria na Câmara, capitaneada pelo deputado Luiz Antônio Medeiros (PL-SP), vai investigar o esquema Uruguai-Paraguai-Brasil e convocar outros suspeitos para depor. Nas mãos dos deputados está uma lista com nomes de 26 brasileiros, investigados pela PF, donos de fábricas de cigarros no Paraguai. Um deles, inclusive, também mantém uma indústria no Brasil. “São bandidos, gente que mata mesmo”, diz Medeiros, que responsabiliza setores do poder público pelo aumento do contrabando. “Há muita permissividade de fiscais, policiais, etc.”
A corrupção é quase sempre apontada como grande vilã do contrabando, mas a falta de investimentos na Receita Federal, principalmente no setor aduaneiro, também colabora para o problema. O resultado são ocorrências inusitadas como a instalação de um posto de aduana integrado – dividido pelos governos de Brasil e Paraguai – em Salto del Guayrá, cidade paraguaia vizinha de Mundo Novo (MS), a oito quilômetros da fronteira. Ser longe ou não do Brasil não seria tanto problema, se neste percurso não estivesse instalado um depósito que, segundo investigações da PF, pertence a uma fábrica de cigarros. Ou seja, mais perto do Brasil que a própria aduana. “É surreal”, diz Alexandre Lattari, diretor do Unafisco, o Sindicato dos Auditores da Receita Federal. “Eles estão praticamente em território brasileiro. Podem colocar aqui o que quiserem, já que a aduana está depois”, indigna-se. Lattari e outros colegas foram ameaçados por paraguaios armados quando fotografavam o galpão na terça-feira 22.
Para ele, nada vai melhorar enquanto a Receita não for encarada pelo governo como um órgão de Segurança Pública, e não meramente de arrecadação. “Falam tanto em disponibilizar recursos para a Polícia Federal, mas ela faz flagrantes de grandes esquemas, enquanto nós fazemos o dia-a-dia da fiscalização.” Lattari pede investimentos também na corregedoria da Receita, para flagrar e evitar casos de corrupção. “Há uma rede de servidores públicos dispostos a falsificar documentos e fazer vista grossa para o contrabando”, afirma. Ronaldo Lázaro Medina, coordenador do sistema aduaneiro da Receita, concorda, mas diz que o órgão faz o que pode com o pouco que tem. Só que o que pode é muito pouco: “Pegamos menos de 5% da carga de cigarro que entra no País.” No ano passado foram destruídos 78 milhões de maços.
Crime organizado – Cerca de 40% do volume contrabandeado apreendido corresponde a pacotes de cigarros. “É ele que viabiliza economicamente o resto do mercado ilegal. Vende muito e a margem de lucro é alta. Se fosse reduzido, ajudaria também a diminuir o contrabando de outros produtos”, acredita Medina. O advogado Fernando Ramazzini, diretor da Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF), que esteve na CPI da Pirataria na última semana, diz que em um mesmo ônibus ou caminhão encontram-se cigarros, produtos alimentícios, eletrônicos e até quilos de maconha. “É o crime organizado. O sujeito tem a logística de distribuição pelo País e vai jogando estes produtos por aí, através da malha rodoviária”, afirma. Para tentar combater a entrada de produtos do Paraguai sem o pagamento de impostos, a Receita propôs aos vizinhos que brasileiros pudessem ajudar na fiscalização das fábricas e controlar os cigarros produzidos do outro lado da fronteira. Embora eles tenham topado, até agora nada foi feito na prática. Estima-se que a produção paraguaia seja mais de 30 vezes maior que seu consumo interno: a fabricação de 87 bilhões de unidades por ano para um mercado de 2,5 bilhões. Há 36 fábricas no país, 25 delas com capacidade de produzir em larga escala – para ter uma idéia, sabe-se que o Brasil abriga cinco indústrias, fora as que atuam clandestinamente sonegando impostos. Para Ramazzini, o governo paraguaio faz vista grossa para as fábricas, já que elas geram empregos. “Não cobram impostos, facilitam ao máximo. Não é de interesse deles. Tem muito dinheiro envolvido e alguns dos falsários são autoridades e políticos de lá que ganham com isso”, diz. E propõe: “O Brasil tem que resolver diplomaticamente, dialogando com o governo paraguaio, e não só tentando pegar o que já foi produzido.” Medina também acha que apenas combater o contrabando não resolve. “Simplesmente eles vão entrar por outros países da América Latina”, afirma.
Mas o que fez com que o problema ficasse desse tamanho? Para o ex-deputado Emerson Kapaz, presidente do Etco, a culpa é do governo Fernando Henrique Cardoso, que pregava a idéia de que para diminuir o consumo era necessário aumentar a carga tributária. “Foi uma visão enganosa que só piorou. Agora as pessoas fumam o mais barato, que tem inseticida e outros venenos”, diz. Hoje, 78% do valor do cigarro corresponde a tributos como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) e PIS/Cofins. Isso faz com que o produto ilegal saia por menos da metade do valor no varejo. Nos camelôs do Brasil é possível encontrar marcas contrabandeadas que custam de R$ 0,50 a R$ 1, enquanto a média de preço de um maço comercializado legalmente é de R$ 1,42. “É uma lucratividade de 70% que ninguém consegue em nenhum setor da indústria”, observa Kapaz. Ele explica que o aumento da carga tributária coincidiu com o aumento do contrabando. “Onerando cada vez mais os mesmos setores, cria-se o círculo vicioso da ilegalidade: o contrabando cresce, o governo perde receita e aumenta o imposto, aí o contrabando cresce, o governo perde receita e por aí vai...” Além disso, a estratégia de combater diretamente os camelôs, diz Kapaz, não funciona. “O ambulante é um inocente útil. Ele só vende se tiver o que vender. É preciso atacar o mal pela raiz”, diz.
Emprego na China – A indústria do fumo emprega no País cerca de cinco mil pessoas diretamente e 430 mil indiretamente. O governo arrecada com o mercado legal cerca de R$ 6,8 bilhões por ano, resultado da comercialização de uma média de 98 bilhões de unidades. Emerson Kapaz admite que não é fácil convencer o consumidor de que, algumas vezes, é melhor comprar o mais caro: “É tarefa difícil, afinal, o desemprego é recorde. Mas o Etco lançou uma campanha que propõe o seguinte: ‘Se você compra produto da China, vai procurar emprego na China’”, diz o ex-deputado. E tem cigarro da China? Tem, sim. E da Índia, da Bolívia, da Venezuela... Além de prejudicar o Fisco, esses cigarros também prejudicam – ainda mais – a saúde de quem os consome. Um laudo realizado pelo perito Edmundo Felipe Braun, professor da Academia de Polícia de São Paulo, avaliou os componentes de pelo menos 20 marcas encontradas no mercado clandestino. Surpresa desagradável. Entre outros ingredientes indigestos estão pedaços de barbante, grãos de areia, insetos, bichos de fumo, capim, sementes de ervas e plástico. Mais assustador ainda são os teores de alcatrão, nicotina e monóxido de carbono, todos acima do nível permitido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): na média, eles possuem 16mg de alcatrão (4mg a mais), 1,10mg de nicotina (0,10 a mais) e 15mg de monóxido de carbono (13mg a mais). A identificação dos teores nos maços é rara e, quando ocorre, pode estar errada. Além disso, foram encontrados dois tipos de inseticidas: endosulfan e permethrin, cuja utilização está proibida no Brasil. O resultado da perícia foi encaminhado aos deputados da CPI da Pirataria na última semana. “Quando o sujeito traga, está colocando no pulmão veneno puro”, conclui Ramazzini.
E foi-se o tempo em que só fumava cigarro falso quem comprava em bancas de camelôs. Hoje é possível adquirir um maço na padaria da esquina sem notar a diferença. A qualidade das falsificações melhorou e muito, fazendo com que o mercado formal absorvesse esses produtos, comprando por menos da metade do preço e repassando pelo valor de tabela. Até os selos da Anvisa, obrigatórios nos maços vendidos em território nacional, são falsificados em fábricas brasileiras. Na quinta-feira 24, a ABCF participou, junto com a Polícia Civil, de uma operação em Belo Horizonte que apreendeu 3,5 mil pacotes de cigarros falsos, visitando apenas 36 estabelecimentos. As penalidades para esse tipo de crime (venda ou exposição à venda de cigarros de origem ilegal) vão de três a oito anos de prisão. A Receita Federal divulgou, no início do ano, uma portaria informando que, a partir de janeiro, as ações fiscais seriam intensificadas. Afinal, os bilhões de reais não arrecadados fazem muita falta para um país que precisa investir para sair da crise.