Sul 21
Editorial
10/02
Agora que o Supremo Tribunal Federal decidiu sobre a autoridade e a competência do Conselho Nacional de Justiça processar juízes e investigar suas atividades, independente da iniciativa das corregedorias dos tribunais estaduais, temos, finalmente, o que comemorar. Foi contida a postura corporativa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) de tentar cercear, por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), o poder de investigação e punição do órgão constitucionalmente criado para controlar a ação dos juízes brasileiros.
Ainda que a AMB tenha agido dentro da lei e exercido o seu direito legítimo de contestar uma prerrogativa do CNJ que ela considerava excessiva, a iniciativa da entidade representativa dos juízes brasileiros demonstra quão distante está da cultura das elites e das autoridades brasileiras a aceitação da existência de limites impostos externamente às suas ações. Autoridade, no Brasil, soa como sinônimo de privilégio e, quase sempre, de impunidade. As autoridades judiciárias, como agravante, são vistas como intocáveis – pairam acima dos comuns mortais e, o que é pior, grande parte delas assim se sentem e assim se julgam.
Louvável, pois, o julgamento do STF. O que se espera, agora, é que mais órgãos e procedimentos de controle externo sejam criados e suas ações estendidas para todos os poderes públicos. Assim como não bastam as corregedorias dos tribunais estaduais para investigar as ações dos juízes, pois que, como afirmou o ministro do STF Gilmar Mendes, “até as pedras sabem que as corregedorias não funcionam quando se trata de investigar os próprios pares”, também não bastam as corregedorias do Ministério Público, da Polícia Militar e da Polícia Civil, da Câmara e do Senado Federal, das Assembléias Legislativas, das Câmaras Municipais, dos Tribunais de Contas e de quaisquer outros órgãos e poderes públicos.
Sem controle externo, todos agem corporativamente, no pior sentido do termo. Defendem seus próprios interesses sobre os do conjunto da sociedade. Isto é da condição humana. “Primeiro os meus, depois os teus”, diz o ditado popular. Uma postura que não foi inventada pelo capitalismo, mas que foi, sem dúvida, agravada por ele e pela sociedade moderna. Foi por este motivo que os próprios “inventores” da sociedade moderna “inventaram” também, os mecanismos de controle sobre os bens e agentes públicos.
Primeiro, dividiram-se os poderes, criando-se o Legislativo, o Judiciário e o Executivo, mas mantendo-os colaborativos e complementares, como na Inglaterra dos séculos 17, 18 e 19. Depois, além da divisão dos poderes, introduziram-se mecanismos de controle recíproco entre os poderes, como nos EUA, a partir de sua Constituição de 1787. Criaram-se também, ao longo dos anos, em todo o mundo desenvolvido e com democracia consolidada, mecanismos de controle interno e externo aos poderes e órgãos públicos.
Percebeu-se que as eleições, a renovação periódica dos mandatos e até mesmo a participação popular eram insuficientes para limitar a tendência humana de buscar o melhor para si e para os seus, ainda que ao custo de prejuízo para os demais. Percebeu-se a necessidade de que os agentes, as autoridades e os órgãos públicos estivessem sob controle permanente e que, além da vigilância interna que pudesse ser exercidos sobre eles, eles estivessem também submetidos ao controle externo e sujeitos à responsabilização pelos seus atos. Criou-se o que se chama hoje de accountability, ou seja, a obrigação dos agentes e autoridades públicas de prestar contas a instâncias controladoras de suas ações e de serem responsabilizados publicamente por elas.
A própria inexistência de uma palavra em português pela qual se possa traduzir o termo accountability já é evidência suficiente da dificuldade de se construir no Brasil, um país de forte tradição escravista e elitista, uma cultura de controle, prestação de contas e responsabilização das autoridades e agentes públicos. Os mecanismos existentes são ainda incipientes e insuficientes. A todo o momento, como se viu pela Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pela AMB, tenta-se limitar e inibir a ação fiscalizadora no país.
Deu um passo importante o STF, reafirmando a competência e a autoridade do CNJ. Será preciso que a sociedade civil impulsione, a partir de agora, ações visando a criação de novos e mais bem equipados órgãos e mecanismos de controle externo sobre todos os órgãos, agentes e autoridades públicas de todas as instâncias de poder no Brasil.