Um espião na Esplanada

Época
23/03

O ex-auditor Pedro Anceles, elogiado pelo secretário da Receita Federal, influenciava decisões tomadas no coração do governo enquanto defendia interesses do setor privado 

LIVRE ACESSO Como auditor da Receita, Pedro Anceles participou de projetos na Fazenda e na Casa Civil. Ao mesmo tempo, ele prestava assessoria a empresas  (Foto: Sérgio Lima/ÉPOCA)

 

Na história da espionagem são raros os episódios em que um agente duplo é flagrado em plena atividade e sua identidade é revelada ao público. São tão raros que seus nomes ficam conhecidos. É o caso do britânico Kim Philby, que fugiu para Moscou em 1963, depois de anos passando informações secretas à União Soviética. Ou de Aldrich Ames, o analista da CIA (a Agência Central de Inteligência americana) condenado em 1994, também por espionar para soviéticos, depois para os russos. Em tempos recentes, o exemplo mais chocante foi Robert Hanssen, o ex-funcionário do FBI (a polícia federal americana) que, durante 22 anos, passou informações confidenciais à União Soviética e à Rússia.

No Brasil, qualquer comparação com Philby, Ames ou Hanssen seria um exagero. Mas também é possível encontrar agentes duplos no Estado brasileiro. A atuação desses “espiões” costuma ser de outra natureza. Eles vendem informações estratégicas de órgãos públicos ou usam sua influência em benefício da iniciativa privada – e, com isso, fazem dinheiro. Duas semanas atrás, ÉPOCA revelou um desses casos. Trata-se do ex-auditor fiscal Pedro dos Santos Anceles, defenestrado em novembro passado pelo ministro Guido Mantega, da Fazenda, por improbidade administrativa. Foram várias as irregularidades cometidas por Anceles e descobertas pela Corregedoria da Receita Federal. Entre outras práticas, ele faltava ao trabalho para prestar consultoria à iniciativa privada e simulava palestras para repassar a seus clientes conhecimentos que deveriam ficar restritos ao Fisco. De acordo com novos documentos obtidos por ÉPOCA, Anceles não agiu somente no Fisco. Sua atuação se estendeu pela Casa Civil, da então ministra Dilma Rousseff, pelo gabinete do ministro Mantega e até por um grupo de trabalho criado por ordem do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Anceles participou da elaboração de diversas medidas provisórias e projetos de lei, além de normas fiscais. As novas revelações fazem parte do inquérito em que a Corregedoria da Receita investigou o caso de Anceles, a que ÉPOCA teve acesso com exclusividade. De acordo com os documentos, Anceles teve liberdade para atuar, no período em que estava na esfera de comando do atual secretário da Receita Federal, Carlos Alberto Barreto.

mensagem - Receita Federal (Foto: reprodução)

A principal testemunha de defesa de Anceles na investigação foi ninguém menos que o próprio Barreto, de quem Anceles se disse “amigo” próximo e que ele classificou como “uma pessoa bem acessível”. Quando Anceles praticou a maior parte das irregularidades, entre 2006 e 2008, Barreto era seu superior hierárquico direto, como secretário adjunto da Receita. Quando prestou depoimento, em março de 2010, Barreto presidia o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão do Ministério da Fazenda. Ele voltou ao Fisco em janeiro de 2011, no posto máximo do órgão.

No depoimento que prestou à Corregedoria, Barreto usou diversas expressões elogiosas para defender Anceles perante os investigadores. “A postura profissional e ética do sr. Pedro, enquanto funcionário e colaborador, tinha alto reconhecimento dentro da organização da Receita Federal”, afirmou Barreto. Entre 2003 e 2008, Anceles estava lotado na Delegacia de Julgamento da Receita em Santa Maria, Rio Grande do Sul. À comissão de inquérito, Barreto disse que, durante o período em que supervisionou as Delegacias de Julgamento, de 2002 a 2008, “diria que a DRJ de Santa Maria (comandada por Anceles) sempre foi muito produtiva e atuante, sendo os julgamentos lá realizados de alta qualidade”.

O depoimento de Barreto não traz apenas louvores a seu antigo subordinado. Ele põe em dúvida algumas afirmações do próprio Barreto sobre o caso Anceles. Na edição 720, do último dia 5, ÉPOCA revelou que Anceles operou dentro do Fisco para influenciar na redação de uma medida provisória que mudou a tributação sobre o café, beneficiando, entre outros grupos, cooperativas do setor. Barreto negou que Anceles tivesse participado das discussões sobre a MP. À Corregedoria, porém, ele disse que era justamente na área de tributação de cooperativas e temas relacionados à atividade rural em que Anceles mais atuava. Eis o que afirmou Barreto, segundo o inquérito: “Perguntado sobre em que áreas o servidor Pedro Anceles atuava (...), respondeu que em várias áreas, mas principalmente na área de cooperativismo e tributação de cooperativas e de atividade rural de pessoa física. Que o sr. Pedro Anceles também era muito consultado informalmente pela Cosit (Coordenação-Geral de Tributação) devido ao respeito profissional que possuía”. A Cosit, citada por Barreto, é o “cérebro” da Receita, por onde passam todas as mudanças na legislação fiscal do país.

Muitas das palestras que Anceles ministrava a empresas privadas ocorreram durante o horário de expediente na Receita. À Corregedoria, ele disse que não considerava suas ausências como falta ao serviço, pois, “embora informal, comunicava via telefone a sua compensação”. Na opinião da Corregedoria, essa “compensação” constituía apenas uma farsa, uma vez que Anceles não poderia assinar nenhum documento nas férias, período em que dizia trabalhar no lugar das faltas. A comunicação das ausências era, segundo o inquérito, feita a Barreto. Em seu depoimento em defesa de Anceles, Barreto disse saber “que (Anceles) ministrava palestras, algumas no interesse da administração” e afirmou que “se o sr. Pedro exercia estas atividades naquele período, não prejudicava as atividades de delegado”.

Um episódio revela como Barreto estava errado. Nessas atividades paralelas, Anceles foi, nas palavras da Corregedoria, “desleal” com a Receita. Ele recebeu R$ 20 mil da empresa CVI Refrigerantes Ltda. para comparecer ao evento “Serviço de análise e interpretação da legislação do PIS e da Cofins”, realizado em Santa Maria, nos sábados do mês de abril de 2007. Anceles não tinha autorização para participar do evento. Os slides de sua apresentação revelam que ele estava lá para “aclarar” e apresentar ao contribuinte os “atalhos” e as “ferramentas” para uma “melhor” estratégia de “cálculo dos tributos”. Tradução: para ensinar a pagar menos impostos. A função de um auditor fiscal é justamente a oposta: lutar contra a elisão fiscal, contra a sonegação – e garantir que os contribuintes recolham devidamente seus impostos. Por intermédio de sua assessoria, Barreto afirmou a ÉPOCA “que não sabia das atividades paralelas” de Anceles quando prestou seu depoimento à Corregedoria. “Não houve qualquer proteção ao ex-servidor”, disse. Ele afirmou ainda que “desconhece a eventual utilização inadequada de qualquer informação” do Fisco por Anceles.

Quando chefiava a Delegacia de Santa Maria, no período em que era subordinado direto de Barreto, Anceles viajou pelo menos dez vezes para Brasília para integrar grupos de trabalho encarregados de elaborar legislação tributária. Anceles participou da elaboração de dois projetos de lei enviados pela Presidência da República ao Congresso Nacional em 2008, que ainda estão em discussão na Casa e propõem, basicamente, isenção tributária a cooperativas. De acordo com o depoimento de Barreto, Anceles “atuava ajudando a Cosit na elaboração de atos normativos infralegais e de projetos de leis e medidas provisórias”.

ESPIONAGEM O ex-auditor Pedro Anceles (no alto) e o secretário da Receita, Carlos Barreto. Anceles foi elogiado por Barreto mesmo após a descoberta de  várias ações irregulares  (Foto: Abr e Carlos Silva/Esp. CB/D.A Press)

Outros dois auditores, também ouvidos pela Corregedoria a pedido de Anceles, foram além. O responsável por formular pareceres da Cosit, Nelson Pessuto, contou que trabalhou em duas ocasiões com Anceles em Brasília. Na primeira, na elaboração de uma Instrução Normativa que dispõe sobre cooperativas. No segundo caso, em 2008, num grupo de trabalho coordenado pelo próprio Barreto e, segundo Pessuto, criado a pedido do então presidente Lula para elaborar projetos de lei para a Casa Civil sobre tributação de cooperativas. Pessuto, de acordo com o inquérito, afirmou que “o grupo de trabalho, no qual o sr. Pedro (Anceles) era um integrante, foi convocado oficialmente pelo ministro Mantega para uma reunião sobre o assunto numa sala de reuniões anexa ao gabinete do ministro. Que o sr. Pedro foi designado para falar em nome da Fazenda, pois era pessoa altamente preparada sobre o assunto”. O outro depoente, o atual subsecretário de Tributação, Sandro de Vargas Serpa, disse que esse grupo passou a trabalhar para a Casa Civil e que o “sr. Pedro continuou colaborando nos trabalhos”. Naquele ano de 2008, a então ministra-chefe da Casa Civil era a hoje presidente Dilma Rousseff.

Procurada por ÉPOCA, a Presidência da República informou que funcionários “de todos os ministérios e de órgãos do governo participam, com frequência, de inúmeras reuniões temáticas de suas áreas com assessores da Casa Civil”. O Ministério da Fazenda afirmou que “é rotineira a participação de funcionários da Receita Federal em grupos de trabalho de nível técnico que envolvam discussões sobre tributação”. Em relação a Anceles, a Fazenda disse que “uma vez constatados e averiguados pela Receita problemas por parte do então servidor, o mesmo foi demitido, o que mostra que não houve qualquer conivência (do secretário Barreto)”. Barreto afirmou por meio de sua assessoria que é usual funcionários da Receita Federal participarem de reuniões de trabalho sobre matérias tributárias. “Tais reuniões teriam ocorrido antes de comprovadas as irregularidades que culminaram na demissão”, disse Barreto. Ele informou ainda que teria de “fazer um levantamento para saber quem convocou (Anceles para participar de reuniões em Brasília) e quem autorizou as despesas”. As reuniões mencionadas por Barreto podem ter ocorrido antes de comprovadas as irregularidades, mas as suspeitas de atividades subterrâneas já recaíam sobre Anceles desde 2007 e eram conhecidas pela cúpula do Fisco.

O Ministério Público Federal e a Polícia Federal no Rio Grande do Sul também mapeavam os passos de Anceles. Suas atividades paralelas vieram à tona quando a PF deflagrou, em novembro de 2007, a Operação Rodin, contra um esquema de desvio de R$ 44 milhões no Detran gaúcho. Ao fazer apreensões de documentos em empresas envolvidas no rombo, a PF descobriu numa delas um recibo de pagamento de R$ 40 mil de uma empresa de auditoria e consultoria tributária, a Rio Del Sur, para Anceles. A Rio Del Sur também tinha negócios na área de telefonia, tendo contratado os serviços de Anceles para prestar consultoria tributária no setor de telecomunicações. Anceles disse que devolveu os R$ 40 mil recebidos em abril de 2006 porque acabou não prestando o serviço. A devolução, no entanto, só ocorreu exatos dois anos depois de recebido o dinheiro e quatro meses após a operação da PF.

A Receita também participou da Operação Rodin e tinha informações detalhadas sobre os alvos da ação policial. Um contingente de 46 auditores e analistas do Fisco ajudaram 252 policiais nas buscas e apreensões de documentos e computadores. A partir da ação da PF, o Ministério Público Federal (MPF) passou a acompanhar as andanças de Anceles pelo mundo da consultoria privada. O trabalho da Corregedoria da Receita começou a partir de uma denúncia encaminhada pela Controladoria-Geral da União. As duas frentes correram em paralelo até os procuradores da República tomarem um susto com a decisão inicial da Corregedoria do Fisco sobre o caso. Mesmo diante das evidências das irregularidades cometidas por Anceles, a comissão de inquérito da Corregedoria propôs, num primeiro momento, apenas uma suspensão de 90 dias como punição. Em correspondência sigilosa enviada à Corregedoria em agosto do ano passado, os procuradores da República em Santa Maria afirmaram que o caso era de demissão sumária. “O servidor se ausentava habitualmente durante o horário de expediente, sem autorização e sem sofrer desconto em sua remuneração, o que demonstra prejuízo ao serviço público e à administração”, disse a Procuradoria. Tal afirmação contradiz a versão de Barreto de que o trabalho paralelo de Anceles não afetava seu desempenho.

Com base nessa correspondência e no trabalho da Corregedoria, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional elaborou um parecer propondo ao ministro Mantega que demitisse Anceles. Em novembro passado, Mantega assinou portaria com a exclusão de Anceles dos quadros do Fisco. Anceles entrou com uma ação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para anular sua demissão. O STJ negou o pedido de liminar duas semanas atrás, mas o julgamento continua. O advogado Maurizio Colomba afirmou que Anceles não cometeu falhas ou ilegalidades, como tráfico de influência ou repassar a contribuintes informações sigilosas. Segundo Colomba, o MPF interveio indevidamente na investigação da Corregedoria, ao pedir a demissão de Anceles, sem ter competência para isso.

Numa das páginas do trabalho da Corregedoria, os membros da comissão de inquérito chamam Anceles de “anfíbio”, termo usado para designar auditores fiscais que ora trabalham para o Fisco, ora defendem interesses da iniciativa privada contra a Receita. Anfíbio ou agente duplo como Philby, Ames ou Hanssen, Anceles acabou desmascarado e caiu em desgraça. Pena que a descoberta de casos como esses continue rara.

 

Os tentáculos do auditor espião

Então delegado de julgamento e auditor da Receita Federal, Pedro Anceles tinha acesso a informações sigilosas e serviu ao mesmo tempo ao público e ao privado entre 2006 e 2008. Ele ajudava na formulação de políticas tributárias e assessorava empresários

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