Agência Brasil - 23 de março de 2015
A necessidade de rever os padrões de consumo da água é um alerta antigo, mas que ganhou um caráter real com a atual crise de abastecimento em alguns estados do país. Em 1993, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu 22 de março como o Dia Mundial da Água, já se apontavam os desafios relacionados à proteção desse bem finito e essencial à vida humana.
A Agência Brasil conversou com especialistas sobre o que consideram falhas cometidas na gestão dos recursos hídricos que levaram à pior situação de escassez dos últimos 84 anos no Sudeste brasileiro. Eles falam também sobre alternativas para garantir a sustentabilidade dos recursos existentes.
A coordenadora da articulação Aliança pelas Águas, Marussia Whately, acredita que a crise pode ser um marco para construção de uma nova cultura de cuidado com a água. “A estiagem não é a razão da crise, mas acaba sendo o estopim dela. A diminuição do nível das represas trouxe à tona uma série de descuidos históricos com os recursos hídricos, que resultaram na baixa resistência das áreas que produzem água para as grandes cidades, como é o caso do Cantareira”, declarou.
Como exemplo dessa ausência de proteção dos mananciais, ela cita a Represa Billings. “[A Billings] Não pode ser usada [como alternativa para abastecimento] porque está extremamente poluída e não houve qualquer prioridade para cuidar dela”, constata Marussia.
Além da falta de atenção com as represas, ela aponta a inexistência de diálogo com a sociedade como um dos fatores que explicam o agravamento da crise no ano passado. “As medidas adotadas para a gestão da crise foram decididas internamente pelo governo estadual com quase nenhuma discussão com a sociedade, por exemplo, o uso do volume morto."
O desmatamento no entorno dos mananciais, que compromete a capacidade desses territórios de terem um ciclo vigoroso de produção de água, também é um fator citado pela coordenadora. Por último, Marussia destaca como marco para o agravamento da crise o período eleitoral em que pouca coisa foi feita para gestão da crise e medidas como a regulamentação de reúso da água e ampliação do uso de cisternas para as chuvas de verão não avançaram. “Isso fez com que medidas impopulares, como multa e racionamento, não fossem adotadas e fez com que não houvesse o compartilhamento de informações em um espectro mais amplo”, avaliou.
O governo estadual aguarda o fim do período de chuvas, em abril, para avaliar se o racionamento será necessário na Grande São Paulo. Apesar da melhora do índice pluviométrico em fevereiro, com precipitações 61% acima da média, a situação ainda é crítica. A Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp) destaca que a retirada de água do Cantareira diminuiu em mais 50%. Além disso, o governo aponta que as obras programadas garantem o abastecimento da região metropolitana, mesmo que chova 80% a menos que os últimos dois anos.
Ainda este ano, a Sabesp espera ampliar a produção de água no Sistema Alto Tietê em 7,4 metros cúbicos por segundo (m3/s). Isso deve ocorrer com obras na Represa Billings, além de captações nos rios Itatinga e Guaió. A companhia destacou ainda o reforço com 0,5 m3/s da adutora do Rio Guaratuba. Para o Guarapiranga, a promessa é aumentar a capacidade de tratamento de água em 1 m3/s e ampliar a captação do Alto Juquiá em 2 m3/s.
O professor de hidrologia e recursos hídricos da Universidade de Campinas (Unicamp) Antônio Carlos Zuffo lembra que o nível do Sistema Cantareira está cerca de 18% negativo. “Hoje [primeira quinzena de março], nós estamos sem o primeiro volume morto, que são 182,5 milhões de metros cúbicos [m3], e sem os 10% que corresponderiam a 100 milhões de metros cúbicos que tínhamos em abril do ano passado e não temos mais. A diferença dá 282 milhões de metros cúbicos a menos do que tínhamos no ano passado e já era ano de crise”, relembrou. Ele avalia que as obras anunciadas podem amenizar o problema no futuro, mas que atualmente não restam muitas soluções: é preciso economizar.
Para Zuffo, a crise não resulta de falta de planejamento. “Todas essas obras que estão sendo anunciadas e foram estudadas no passado, há mais de 30 anos. Foi a falta de colocar em prática aquilo que tinha sido planejado. Os estudos não saem da cartola de uma hora para outra”, declarou.
Ele critica o que chama de “gestão de alto risco” praticada no Cantareira, levando a uma superexploração dos recursos. “O sistema foi dimensionado em um período seco e foi operado em um período de chuvas maiores, ao longo de quatro décadas. Isso criou a falsa ilusão de que o sistema produziria mais vazão do que ele foi projetado. Agora vivemos exatamente o oposto”, analisou.
O pesquisador também avalia que a participação da sociedade na tomada de decisões sobre os recursos hídricos é fundamental para um planejamento adequado do uso da água. “Nós temos uma das políticas de recursos hídricos mais avançadas do mundo. As leis preveem um gerenciamento dos recursos hídricos por bacia hidrográfica”, observou.
Ele avalia, no entanto, que, com a crise, as decisões foram centralizadas. “Isso vai de encontro a tudo que se diz que funciona no mundo em termos de gerenciamento de recursos hídricos.”