Carta Maior
Por Paulo Kliass
Por meio da Lei n° 9.249, empresas de todos os setores passaram a ser isentos de imposto de renda sobre lucros e dividendos
As grandes instituições financeiras tupiniquins parecem atuar em um universo paralelo. O Brasil está sentindo os efeitos dramáticos da pandemia em praticamente todas as suas dimensões. Para além das quase 120 mil mortes, assistimos ao crescimento impressionante do desemprego e da precariedade no mercado de trabalho, com consequências terríveis para grande maioria de nossa população. Do ponto de vista das empresas, observa-se igualmente um quadro de enormes dificuldades, com aumento exponencial do encerramento de atividades, falências e diminuição do faturamento.
Pois exatamente ao longo desse mesmo período, os lucros dos bancos mantêm-se bilionariamente elevados. Durante o primeiro semestre do pior ano da história de nossa economia, apenas os balanços dos quatro maiores bancos apresentaram o vergonhoso resultado de R$ 26 bilhões a título de lucros. É bem verdade que esses números representam uma queda na comparação com os R$ 40 bi auferidos em 2019. Porém, frente a um quadro estarrecedor da atividade econômica de forma generalizada e das condições sociais, ainda é de espantar os valores apresentados.
Vale ressaltar, ainda, a generosidade da legislação aprovada por Fernando Henrique Cardoso em 1995. Por meio da Lei n° 9.249 daquele ano, passaram a ser isentos de imposto de renda os lucros e dividendos obtidos por empresas de todos os setores. Dessa forma, todo os ganhos distribuídos aos acionistas ou proprietários de bancos ao longo desses 25 anos não recolheram um único centavo ao Tesouro Nacional. Impressiona, além de tudo, que nenhum governante tenha encaminhado ao Congresso Nacional alguma medida propondo a eliminação de tal aberração.
Poder e lucro da banca.
O fato é que o poder oligopolista dos mastodontes que operam no financismo de nossas terras lhes assegura renda fácil em todas as circunstâncias. No período da inflação elevada, os bancos ganhavam por sua capacidade de se antecipar à perda do valor de compra da moeda e também pelos ganhos na arbitragem de juros. Na sequência do Plano Real em 1994 e a estabilização monetária que veio com o mesmo, os bancos aumentaram em muito seus ganhos por meio da política de juros nas estrelas e com a subserviência do Banco Central frente aos inacreditáveis spreads por eles praticados nas operações de crédito. Continuamos fazendo companhia à Estônia, na condição de únicos países a oferecerem tal benesse ao capital.
Na verdade, temos assistido ao longo das últimas décadas a uma verdadeira privatização das finanças públicas. As decisões de política econômica têm sido sistematicamente concebidas e implementadas com o objetivo maior de atender carinhosamente aos interesses da banca. Não por acaso, 9 em cada 10 presidentes do Banco Central indicados são originários da direção de instituições bancárias privadas. Ao ocuparem postos estratégicos no comando e no ordenamento das políticas públicas associadas à economia, esses indivíduos não se esquecem jamais de seu local de origem. Em situação análoga, temos ocupantes desse tipo de posto que saem do espaço público e mudam de lado, passando a atuar como dirigentes dos interesses do financismo. A título de exemplo, vale recordar que as duas últimas pessoas a ocuparem o cargo máximo da Secretaria do Tesouro Nacional são hoje economistas-chefes de grandes bancos privados.
Ao tratar do espaço da administração pública como se fosse seu próprio quintal, os representantes dos bancos não esperam por oportunidades para ampliar os ganhos de quem os colocou ali. As medidas podem ser escancaradas por meio de decisões escandalosas amparadas na certeza da impunidade ou camufladas por uma certa áurea de “neutralidade técnica” na decisão adotada. A recente entrega de parte da carteira de crédito do Banco do Brasil ao concorrente privado BTG por preço de banana pertence seguramente ao primeiro grupo. Não deve ser por mera coincidência que o superministro da economia tem sua origem como diretor justamente desse banco privado.
Superávit primário e lucros bilionários.
A persistência doutrinária em implementar o dogma da austeridade fiscal assassina cabe como uma luva no segundo caso. No pacote de falácias está presente a necessidade de obtenção sistemática de superávit primário, com o objetivo de assegurar a drenagem de recursos orçamentários para o pagamento de juros da dívida pública. Esse monumental volume de dinheiro público é direcionado, evidentemente, às instituições operadoras do sistema financeiro. Desde 1996, quando o sistema passou a ser contabilizado oficialmente, o pagamento desse tipo de obrigação já acumula um total próximo a R$ 6 trilhões.
A prioridade, como se vê, sempre foi o cumprimento das despesas de natureza financeira. No comando da economia, Paulo Guedes não se cansa de repetir o mantra duvidoso do “não temos dinheiro”. Mentira! Desde sua posse até junho de 2020, o governo federal já destinou R$ 541 bi para o pagamento de juros da dívida pública. Apesar do discurso recorrente contra os gastos na área social, mesmo em tempos de pandemia, Guedes autorizou o destino de R$ 360 bi ao longo dos últimos 12 meses para essa mesma despesa financeira. Enquanto isso, as rubricas de saúde, assistência social, educação, previdência social e outras são reduzidas para atender ao descalabro do teto de gastos da EC 95.
A conjuntura sempre pode mudar. Inflação alta ou controlada. Taxa de juros elevada ou moderada. Governos progressistas ou conservadores. No entanto, o que se mantém como uma constante é a voracidade da banca e sua incrível capacidade de influenciar decisões no aparelho de Estado e de manter ganhos bilionários em qualquer circunstância.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal