Rede Brasil Atual
Para observadores e analistas, projeto do governo enfraquece o Estado, fragiliza o servidor e beneficia o setor privado
São Paulo – Apresentada no início de setembro por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32, a “reforma” administrativa do governo vai piorar o serviço público, prejudicando servidor e usuário, e beneficiar a iniciativa privada. A avaliação, de vários analistas, foi feita durante live promovida pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado, Paulo Paim (PT-RS). Eles identificam uma tentativa de “destruição” do Estado.
Um Estado social esboçado na Constituição de 1988 e ainda em construção, lembra a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli. Segundo ela, a “gênese” da proposta está apoiada – para não dizer plagiada – integralmente em estudos do Banco Mundial. “É uma reforma ideológica. Tem a ideologia do mercado”, afirma.
Importância do serviço público
O Banco Mundial, por exemplo, propõe reduzir o número de professores e aumentar o número de alunos por classe. “Lotar as salas de aula impede a educação básica”, diz Maria Lucia. Para a saúde, a “ineficiência” estaria no custo dos tratamentos. “Onde estava o ‘mercado’ quando eclodiu a pandemia?”, questiona, destacando a importância do serviço público durante a crise.
Foi uma PEC “formulada de forma autoritária e obscura”, diz o consultor legislativo Luiz Alberto dos Santos. “(Com) falhas conceituais, problemas redacionais, conceituação anárquica, mas sobretudo se lastreia em falsas razões”, acrescenta o colaborador do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).
Gasto público
O governo, por exemplo, tenta fazer crer que os gastos com pessoal aumentaram 145% em 12 anos, mas não considera a inflação do período. Isso reduz o total para 28%, observa Luiz Alberto. Em termos de participação no PIB, acrescenta Maria Lucia, cai de 4,5% para 4,3%. “O problema do gasto público no Brasil está nos gastos financeiros.”
Para o consultor, a PEC 32 complementa outras propostas em tramitação “para permitir uma total fragilização da relação de trabalho do servidor”. Praticamente acabando com concursos e com a estabilidade e abrindo ainda mais espaço à terceirização. “Não se trata de uma reforma, se trata de um novo modelo de Estado”, define.
A tentativa de restringir os serviços públicos ocorre no mesmo momento histórico que “escancara” a importância desses serviços, analisa o professor Jorge Luiz Souto Maior, desembargador no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15ª Região e presidente da Associação Americana de Juristas (AAJ). E quando há muitos trabalhadores sofrendo agora não apenas devido à covid-19, “mas por causa da precarização da vida a que foram conduzidas”, diz, referindo-se a outra reforma, a trabalhista, implementada em 2017.
A proposta atual surge “de caso pensado”, afirma Souto Maior, para atender a interesse econômicos privados. O mercado de trabalho encolheu tanto nos últimos anos que é preciso ampliá-lo extraindo atividades do Estado. “Mas isso é ilusão também do ponto de vista do mercado”, acrescenta o juiz e professor. “Para o cidadão, vai ser um serviço pior.”
Interesses privados
O projeto permite substituição de servidores por cargos de liderança e assessoramento. “Todos poderão vir de fora, inclusive em funções técnicas, na área do fisco, universidades”, diz o advogado Guilherme Zagallo, secretário-geral da AAJ no Brasil. Possibilita ainda nomeações ou demissões “por motivação política”. Além de transferir competências do Congresso para o presidente da República, “o que é arriscadíssimo”.
Para Zagallo, a PEC causa um estrago difícil de consertar. “Praticamente salgando a terra”, compara. Desconstitucionaliza vários direitos dos servidores e traz dispositivos já rejeitados, em outros projetos, para a Constituição. Um deles, lembra, permite expressamente redução de jornada e de remuneração.
“O objetivo central está na quebra da estabilidade dos servidores”, afirma a advogada trabalhista Alessandra Camarano. “O que nós verificamos desde a época de implementação da reforma trabalhista? Promessas. Sempre retirando o ser humano da centralidade da discussão, ferindo normas internacionais do trabalho (trabalho decente) e a Constituição federal (dignidade da pessoa humana)”, acrescenta.
A terceirização generalizada é uma porta aberta para a precarização, diz Alessandra, lembrando que outros países estão revendo reformas feitas no serviço público. “Essa ‘modernidade’ enfraquece o Estado. Quem vai aferir essa ‘insuficiência de desempenho’ (prevista na lei)? Quem vai fazer parte desse colegiado (a PEC prevê uma comissão de avaliação do servidor)?” Ela lembrou ainda que o Brasil já figurou duas vezes na “lista curta” da Organização Internacional do Trabalho (OIT) por desrespeito à Convenção 98, sobre negociação coletiva.
Amigos do rei
Assessor da Frente Parlamentar Mista do Serviço Público, Vladimir Nepomuceno afirma que, além de voltar ao período “pré 88” – ou seja, anterior à Constituição –, a proposta do governo atinge todos os servidores, inclusive os atuais, e vai prejudicar o trabalhador privado. “Vai ficar sem escola pública, saúde pública. Várias instituições serão fechadas. Institutos federais serão fechadas, universidades.” Segundo ele, trata-se de uma reforma a quatro mãos: duas do governo federal e duas do Banco Mundial.
“Um projeto de desenvolvimento nacional só é possível com carreiras de Estado, que tenham compromisso com o Estado”, diz Maria Lucia. “Será que a população quer trocar um servidor concursado por amigos do rei?”
Crítico à PEC, Paim ressaltou que também foram convidados defensores do projeto. Apresentada pelo Executivo em 3 de setembro, a proposta ainda não tramitou. Aguarda despacho do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).