Reforma Administrativa e os riscos institucionais ao Estado


 







*José Celso Cardoso Jr.

Desde 2015, com o aprofundamento das políticas de austeridade fiscal, mas sobretudo desde a destituição de Dilma Rousseff da presidência da República em 2016, e mais ainda, desde o início do governo Bolsonaro em 2019, o Brasil vem passando por transformações sem precedentes na sua história recente.






Desta forma, o debate corrente sobre a reforma administrativa, que voltou ao centro das discussões públicas desde o início do governo Bolsonaro, tem um mérito e vários problemas. O mérito está em recolocar um tema de fato importante – para o próprio Estado brasileiro e sua população – no rol de prioridades governamentais. No entanto, infelizmente, isso tem sido feito sob influência de tantos problemas de compreensão teórica e histórica acerca do assunto, bem como de visão de mundo distorcida acerca da essência e funções do Estado nacional e dos servidores públicos na contemporaneidade, que vem praticamente anulando as possibilidades de diálogo construtivo e de avanço institucional a futuro.

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Partindo de visão ideologizada e negativa acerca do peso e papel que o Estado deve ocupar e desempenhar em suas relações com os mundos econômico e social no país, os ideólogos e propagandistas dessa agenda ancoram seus argumentos em conclusões falaciosas, as quais supõem ser o Estado brasileiro: i) contrário aos interesses do mercado ou do capitalismo como modo de produção e acumulação dominante nas relações econômicas no país; ii) grande ou inchado em termos de pessoal ocupado e respectivo gasto total; iii) caro ou ineficiente em termos de desempenho institucional; iv) falido em termos de sua capacidade própria de financiamento e endividamento; e v) dependente das reformas trabalhista, previdenciária, administrativa e microeconômicas para recuperar a confiança dos investidores privados.

Em termos do tema que aqui nos interessa, há menções a propostas de avaliação regular de desempenho dos servidores para identificar aqueles que “entregam tudo que lhes é demandado”, diferenciando-os daqueles que “não o fazem da forma ou no ritmo” considerados adequados. As métricas para tanto utilizadas estão centradas, via de regra, em duas dimensões: i) na dimensão individual da atuação dos servidores, proveniente de critérios importados do setor privado; e ii) na dimensão da eficiência alocativa do gasto público, como se esta fosse a dimensão exclusiva ou a mais importante da gestão de pessoas e da avaliação do desempenho no setor público.





Não por outra razão, a postura discursiva dos altos escalões do governo federal e o pacote de propostas legislativas em curso atualmente no Brasil possuem em comum a mesma sanha reducionista de remunerações e pessoal, persecutória contra organizações e servidores não alinhados ao mesmo ideário e criminalizadora da própria atuação governamental e de parte dos seus servidores (cf., por exemplo, a LRF/2000, a EC 95/2016, as PECs 186, 187 e 188 de 2019, que conformam o chamado Plano Mais Brasil, e agora a PEC 32/2020, que foi apelidada de PEC da reforma administrativa).

Ou seja, uma lógica de superávit fiscal primário permanente, cuja contrapartida é justamente o enrijecimento – e até mesmo a esterilização – do gasto real como instrumento de políticas econômica e social ativas. Perde-se com isso a própria essência das finanças públicas como objeto e fenômeno de natureza intrinsecamente econômica, ao invés de meramente contábil. Vista da perspectiva econômica, as finanças públicas são algo muito mais amplo e complexo, sendo muito mais importante observar a composição e inter-relações dos gastos públicos (e da própria dívida pública) com as tendências dinâmicas de realização ao longo do tempo, pelo sistema econômico e social, do que os meros saldos contábeis anuais que na verdade pouco ou nada nos dizem sobre a maturidade do arranjo institucional macroeconômico do país em questão, e tampouco sobre o significado do gasto ou do déficit público em si. Como exemplo, basta dizer que poucos economistas sérios advogariam em prol de um equilíbrio fiscal (vale dizer: equilíbrio ou superávit primário) de natureza contábil em momentos de calamidade pública como o causado em 2020 pela pandemia do novo coronavírus sobre a saúde pública de grande parte dos países e populações do mundo.

Do ponto de vista da lógica jurídica, não faz sentido constitucionalizar algo que representará uma espécie de petrificação das finanças públicas brasileiras, uma verdadeira normalização da exceção, a instalar, essa sim, uma situação futura de emergência fiscal permanente, na medida em que os critérios contábeis auto impostos de aferição e cumprimento das atuais regras fiscais brasileiras são inexequíveis na prática e inadequadas teoricamente. Será algo como a lei de conversibilidade do peso argentino ao dólar, instituída em 1991 pelo governo ultraliberal e posteriormente abandonada em 2001 em função do colapso econômico que ela ajudou a produzir. Ou seja, algo dessa natureza pode, sem exagero, colocar o Brasil numa rota de colapso econômico, social e político do país como nação.

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Em essência, portanto, tais propostas carecem de compreensão sistêmica sobre os condicionantes e determinantes do desempenho estatal no campo das políticas públicas. As referidas PECs visam promover, na realidade, um abrangente, profundo e veloz ajuste fiscal, tomado apenas pelo lado das despesas públicas, calando-se sobre as imensas iniquidades e regressividade da estrutura tributária pelo lado da arrecadação. Travestida de reforma administrativa, trata-se na verdade de mais uma peça no arco de medidas de ajuste fiscal permanente e privatizações que estão em curso no país desde 2015, exacerbado pelo dogmatismo das regras fiscais (regra de ouro e superávit primário), reforçado pela PEC 95/2016 (teto de gastos), e agora levado ao paroxismo desde 2019 pelas reformas do governo Bolsonaro/Guedes. Mas a suposta razão fiscal para tamanhas mudanças constitucionais é uma grande falácia.

A constitucionalização das normas citadas reforçará, de um lado, bloqueios e limites superiores ao gasto fiscal primário de natureza real, justamente o gasto que é responsável pelo custeio de todas as despesas correntes, tanto as intermediárias/administrativas, como as finalísticas destinadas à implementação efetiva das políticas públicas federais em todas as áreas de atuação governamental. De outro lado, os mesmos regramentos reforçarão a flexibilização (sem limite superior) e a blindagem (inclusive para fins criminais) do gasto público financeiro, cujos principais beneficiários são as instituições financeiras (bancos, corretoras, seguradoras), fundos de investimento e agentes econômicos de grande porte.

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É fato que no período mais recente houve recomposição de pessoal e de salários na Administração Pública, mas também é fato que esses movimentos foram incorporados à estrutura de gastos do Estado brasileiro, uma vez que acompanhados de aumentos na arrecadação de impostos e no PIB no mesmo período. Deste modo, as despesas com pessoal, em âmbito federal, jamais suplantaram os limites da LRF, mantendo-se o tempo todo bem abaixo da receita corrente líquida. Torna-se cristalina a falácia do discurso hegemônico que busca justificar as reformas em função de um (inexistente) excesso de gastos com pessoal no setor público brasileiro.

Portanto, a principal implicação das considerações feitas até aqui é reconhecer que as propostas de Reforma Administrativa em pauta simplesmente não resolverão nenhum dos problemas reais do setor público brasileiro, mas criarão ou farão piorar vários outros.

José Celso Cardoso Jr. é economista, servidor público federal no IPEA, atual presidente da AFIPEA-Sindical.