Contrapondo a abordagem radical da mídia sensacionalista, algumas vozes esclarecidas começam a ser ouvidas em defesa da aposentadoria do serviço público.
A DEN entrou em contato com alguns destes especialistas, visando fomentar o debate e a participação abalizada nas discussões da polêmica reforma, gerada principalmente pelos setores que atribuem ao servidor público o rombo do setor.
Na edição do último domingo, dia 19, do jornal Correio Braziliense, a Diretora de Administração do Instituto de Economia da UFRJ, Maria Lúcia Werneck, fala de sua tese de doutorado sobre a Previdência Social.
Segundo a professora Maria Lúcia, sua posição acadêmica difere da posição dos especialistas da área. Para ela, não há déficit no sistema previdenciário brasileiro, mas sim o não-aproveitamento de receitas.
Confira a íntegra da entrevista:
"Objetivo da Previdência é social, não econômico"
Do Estado de Minas
A economista Maria Lúcia Werneck, militante de esquerda durante os anos de chumbo da ditadura militar, anda ??temerosa?? com os primeiros dias do governo Lula ? governo que, coerente com sua posição ideológica, ajudou a eleger. ??Na forma como o PT está direcionando o debate sobre a reforma da Previdência, não diria que estou decepcionada ainda, mas temerosa??, ressalta a professora, diretora administrativa do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde os tempos em que o Partidão brigava contra a ditadura na clandestinidade, Werneck tem sua tese de doutorado centrada no tema da Previdência Social. Sua posição acadêmica difere da posição dos especialistas na área e, sabe-se agora, também no governo. Para ela, não há déficit no sistema previdenciário brasileiro, mas sim o não-aproveitamento de receitas. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Reforma da previdência
??Esse debate está com ponto de partida errado. Não tem que fazer a reforma obrigatoriamente, sem olhar para todos os lados da questão. Olhe a experiência dos países latino-americanos que fizeram uma reforma da Previdência Social. Cada país escolheu o seu jeito. Nos países europeus, nem se fala. Não há fórmula correta. Há opções, e o debate é que vai mostrar quais as mais corretas para nossa realidade. ??
Funcionalismo público
??O discurso do governo atual e dos anteriores é muito parecido. Está se omitindo uma questão importante: a Constituição determinou um sistema universal, aberto a qualquer pessoa. Determinou que os funcionários públicos deveriam ter um tratamento diferente. Isso está lá nos capítulos quatro e oito da Constituição. Mas nunca foi criado um plano de Previdência para o funcionalismo público. Conceitualmente, ela foi instituída para garantir renda aos inválidos, para compensar riscos a que o trabalhador está sujeito no mercado. O seu grande objetivo é social, não econômico.??
??Do ponto de vista concreto, político, a sociedade pode se perguntar que tipo de servidor ela quer. O exemplo dos juízes é emblemático: o que queremos de um juiz? Uma pessoa acima de qualquer suspeita. E, para isso, tem que ter um bom salário, inclusive uma aposentadoria diferenciada. Deve haver uma discussão na sociedade sobre isso: o que podemos fazer para incentivá-lo a estar acima de qualquer suspeita? Muitos países criaram esse sistema diferenciado, o próprio Chile, que fez uma reforma liberal, resguardou seus militares. A Argentina também diferenciou algumas categorias, mesmo privatizando boa parte de sua Previdência Social.??
??Aqui no Brasil, com as regras atuais, a maneira pela qual os servidores contribuem para sua Previdência é diferente. Os públicos contribuem com 11% da íntegra do seu salário. Isso não acontece com o empregado da iniciativa privada. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é financiado por um terço dos trabalhadores e dois terços dos empregadores, os empresários. No serviço público, o servidor contribui com 11% e o Estado não paga nada, não há contrapartida do empregador.??
??O primeiro problema é saber como chegamos aos R$ 70 bilhões. No fim de 2001, fiz os cálculos das receitas de Previdência e o que o INSS recolheu dava R$ 136 bilhões. Do outro lado, as despesas, incluindo todos os benefícios para o trabalhador privado, além do funcionalismo do ministério, dava R$ 105 bilhões. O sistema de seguridade brasileiro não tem déficit. Pela legislação que regulamentou a seguridade, o INSS só arrecada as contribuições sobre folhas. As demais são arrecadadas pela Receita Federal, vai para o Tesouro, que repassa depois para o INSS. Só que o Tesouro não repassa tudo. No fim de 2001, R$ 20 bilhões ficaram retidos.??
Na edição de hoje, do caderno Dinheiro do jornal Folha de São Paulo, o economista Paulo Nogueira Batista Júnior, que é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, ressalta que a maior parte da imprensa tem tratado a discussão da reforma previdenciária com desequilíbrio.
Segundo Paulo Nogueira ?procura-se frequentemente induzir a opinião pública a acreditar que o problema da Previdência é decorrente dos privilégios do funcionalismo público. Vai se espalhando a avaliação de que o principal obstáculo a essa reforma fundamental é a ?resistência corporativa" do funcionalismo, que tem a perder "com o fim dos privilégios que compõem o grosso do déficit e inviabilizam atuarialmente a Previdência", observou editorial recente do jornal "O Estado de S.Paulo" (21/1. pág A3), vocalizando a opinião predominante em muitos círculos.?
O professor Paulo Nogueira não tem dúvidas de que o problema é grave. ?O crescimento das despesas previdenciárias contribui para dificultar a sustentação dos superávits primários, que se tornaram indispensáveis como resultado da pesada herança fiscal-financeira deixada pelo governo Fernando Henrique Cardoso.
Também não há dúvida de que existem abusos e privilégios no âmbito do setor público, que precisam ser explicados à sociedade brasileira e corrigidos na forma da lei. Mas a palavra "privilégio" tem sido utilizada de maneira abusiva. Parece difícil acreditar que a eliminação dos verdadeiros privilégios, corretamente identificados, possa ser suficiente para resolver o problema.
Por exemplo, repete-se muito que os empregados públicos se aposentam com salário integral, enquanto os do setor privado só recebem do INSS até um certo limite (atualmente de R$ 1.561,56 por mês). Menos comentado é o fato de que os servidores funcionários públicos civis contribuem para a Previdência com uma alíquota de 11% sobre a totalidade dos seus salários, ao passo que os trabalhadores assalariados do setor privado pagam uma alíquota marginal máxima de 11% ao INSS até o mesmo teto de R$ 1.561,56.
A tese muito repetida de que o grande responsável pelo problema previdenciário seria o sistema público, enquanto o INSS seria mais facilmente administrável, baseia-se frequentemente em cálculos nos quais o déficit da previdência pública é definido como a diferença entre os benefícios (aposentadorias e pensões) e as contribuições pagas pelos servidores?, garantiu.
Na opinião do economista, ?o governo Lula estará cometendo grave erro se conduzir a questão previdenciária de modo afobado, com os olhos voltados para as medidas e reformas consideradas indispensáveis pelo chamado mercado, leia-se, pelo capital financeiro local e internacional. Nunca se deve perder de vista que o Estado nacional é uma abstração, que só se materializa plenamente pela ação do seu corpo de funcionários permanentes, que precisam ser motivados e tratados com justiça. Governos que começam desrespeitando e agredindo os interesses dos seus servidores nunca terminam bem?, afirmou.