Na última semana, o Brasil assistiu a dois acontecimentos relevantes que ilustram a importância da estabilidade dos servidores públicos e marcam os debates sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, da chamada reforma administrativa. O primeiro trata da exoneração, em 23 de junho, do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, alvo de notícia-crime realizada pelo delegado e ex-superintendente da Polícia Federal (PF) no Amazonas, Alexandre Saraiva. O segundo se deu com os depoimentos do deputado Luis Miranda (DEM-DF) e do servidor do Ministério da Saúde (MS) Luis Ricardo Miranda, irmão do parlamentar, prestados à CPI da Pandemia, no Senado, em 25 de junho. Em mais de 8 horas de reunião, ambos denunciaram pressões sofridas pelo servidor após denunciar supostas irregularidades cometidas pelo governo federal no processo de compra da vacina Covaxin.
Em 2 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a abertura de inquérito contra Ricardo Salles, com base na notícia-crime protocolada junto à Suprema Corte, 14 em abril, por Alexandre Saraiva. Um dia após a denúncia, Saraiva foi substituído do cargo de superintendente no Amazonas pelo delegado Leandro Almada e transferido para a Delegacia da PF em Volta Redonda, no Rio de Janeiro.
No documento, Alexandre Saraiva acusa Ricardo Salles, o senador Telmário Mota (PROS-RR) e o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Eduardo Bim, de dificultarem ações de fiscalização ambiental conduzidas pelo Poder Público e de utilizarem seus cargos para beneficiar empresários e madeireiros ilegais na Amazônia. Segundo a notícia-crime, os ilícitos têm ligação com a maior apreensão de madeira já realizada na história do país, que ocorreu em dezembro de 2020, no âmbito da Operação Handroanthus, da PF. Mais de 200 mil metros cúbicos de madeira, no valor de R$ 130 milhões, foram apreendidos pelo órgão, no Pará. Salles visitou o local, participou de reunião com madeireiros e chegou a defender publicamente a liberação da madeira apreendida.
Na última quarta-feira, dia 23, após o anúncio da exoneração de Ricardo Salles, Alexandre Saraiva manifestou-se em publicação no Twitter: “E eu continuo delegado de Polícia Federal”, afirmou em alusão à estabilidade que possui como servidor público. Sem estabilidade garantida no exercício de suas funções, teria o delegado da PF a liberdade e proteção necessárias para denunciar as suspeitas de ilícitos acima descritos? Sabemos a resposta para esse questionamento.
Com a aprovação da PEC 32, que tramita atualmente em comissão especial na Câmara dos Deputados, essa garantia constitucional que protege os servidores públicos de pressões motivadas por interesses políticos e privados corre sério risco. De acordo com análise produzida pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) em conjunto com a consultoria Senado, as alterações drásticas previstas na PEC extinguirão o regime jurídico único do funcionalismo, substituindo-o por diversos regimes de contratação, incluindo vínculos temporários de trabalho, sem necessidade de concurso. Tal medida, segundo o documento, acarretará “a extinção da estabilidade para a quase totalidade dos servidores [...] além de desestruturar carreiras e até mesmo retirar a garantia de um sistema de carreiras, precarizando e fragilizando o serviço público”.
O estudo alerta ainda que a PEC 32 prevê que a estabilidade seja atribuída exclusivamente ao servidor que “após o término do “vínculo de experiência”, que poderá ser de 2 ou mais anos, tiver desempenho “satisfatório”, for nomeado dentro do no limite de vagas previsto no edital, e, ainda, cumprir um ano de efetivo exercício, também com “desempenho satisfatório”. Confira a análise completa aqui:
Além destes aspectos, a PEC 32 também permitirá que o Estado contrate pessoal, a curto e longo prazo, para substituir servidores concursados durante paralisações e greves; possibilitará a ocupação de cargos técnicos por indivíduos indicados por políticos; e autorizará a transferência dos serviços públicos para entidades privadas, que poderão usar o seu próprio escopo de pessoal para atender a população em áreas essenciais como saúde, educação e segurança pública. Esse conjunto de medidas terá como consequência o fim da estabilidade e prejudicará toda a sociedade, que ficará a mercê de pessoas sem compromisso com a prestação de serviços de qualidade na Administração Pública e movidas por interesses escusos.
Não por acaso, na última sexta-feira, dia 25, durante sessão da CPI da Pandemia, o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) declarou publicamente sua mudança de posicionamento sobre a PEC 32, afirmando que agora é contra a proposta do governo. A mudança decorreu do fato de que o seu irmão, Luis Ricardo Miranda, servidor do Ministério da Saúde, passou a sofrer ameaças após denunciar um suposto esquema de corrupção praticado pelo governo federal no processo de compra da vacina indiana Covaxin.
Durante a reunião da CPI, o deputado federal declarou: “Depois do que fizeram com o meu irmão, todos os servidores públicos, principalmente aqui no Distrito Federal, se sintam abraçados, porque agora eu sou contra a reforma administrativa. Se não fosse a estabilidade, ele não estaria aqui sentado com a coragem que ele tem de denunciar isso tudo que está ocorrendo. A estabilidade para o funcionário público é a garantia de que ele não possa ser coagido, como tentaram fazer com meu irmão, uma pessoa que só quer fazer o bem e combater a corrupção”. O parlamentar afirma também ter sofrido ameaças.
A escandalosa situação denunciada pelos irmãos à CPI, recheada de suspeitas de ilicitudes e favorecimentos de altas autoridades, só veio às luzes pela bravura do servidor estável do Ministério da Saúde que, baseado em suas prerrogativas, pode expor aquilo que ele espantosamente estava sendo coagido a fazer e se recusou amparado nas leis e nas garantias que o governo quer lhe retirar com a chamada "reforma administrativa". Dentro desse processo, o servidor do MS irá defender-se e buscar garantir os seus direitos, o que não aconteceria se não tivesse a prerrogativa da estabilidade.
A PEC 32, sob a alcunha de "reforma", pretende destruir completamente as bases de um Estado democrático que mal engatinha, nascido há pouco mais de 30 anos, fruto de um Constituição que pretende ainda ser "cidadã". Essa proposta (indecorosa, diga-se de passagem) trata os serviços públicos e seus servidores como peças sujas e imprestáveis, dignas de descarte ou no mínimo sucateamento.
Não podemos compactuar com a destruição do Estado de direito. Não se pode admitir que as estruturas duramente construídas a partir da Constituição cidadã sejam vilipendiadas e jogadas no lixo por interesses de pessoas ou grupos que, ao destruírem a estrutura de políticas públicas brasileiras, consigam se apropriar do Estado, em prejuízo flagrante de todos os brasileiros.
É hora de unir forças e dizer NÃO à PEC 32!
Diretoria Executiva Nacional (DEN)
Sindireceita