Carreiras de verdade são indispensáveis à eficiência no serviço público
Roberto Carlos dos Santos
Desde o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 231/1992, que decidiu pela inconstitucionalidade do instituto da ascensão funcional, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou entendimento sobre o que seria uma carreira. O Voto do ex. Ministro Octavio Gallotti nessa ADI nos esclarece que: "[...] não se compadece com a noção de carreira [...] a possibilidade de ingresso direto num cargo intermediário". E pontifica: "Se há uma série auxiliar de classes e outra principal, sempre que exista a possibilidade do ingresso direto na principal não se pode considerar que se configure uma só carreira".
Chamemos, então, de "carreira de verdade" aquela que conforme a esse conceito, ou seja, aquela carreira estruturada de modo a ter uma única forma de ingresso, por concurso público para seu cargo inicial, sem possibilidades de ingresso em cargo intermediário, e com a perspectiva de evolução funcional, para todos os seus integrantes, até a posição mais elevada na seqüência de desenvolvimento, que deve coincidir obrigatoriamente com o próprio final da carreira. Em sentido contrário, designemos de "pseudocarreira" aquela que, de modo oposto, não se enquadre nesse modelo.
O art. 24 do Ato das Disposições Constitucionais Provisórias (ADCT) da CF/88 previu uma ampla reforma administrativa para compatibilização dos quadros de pessoal à nova ordem constitucional. Conquanto haja esse dispositivo, que aliado ao entendimento do STF sobre carreiras ensejava a perfeita adequação dessas estruturas, esta reforma jamais foi feita. Mesmo nas mais recentes reestruturações, foram instituídas "carreiras" que, em verdade, são um conjunto de carreiras sob a mesma denominação e disposição. Assim, vicejam as referidas pseudocarreiras.
Para quem presta concurso público para ingressar em cargo inicial de uma pseudocarreira, a expectativa é de que, por mais que se esforce pelo aprimoramento profissional, e a despeito da experiência acumulada, ficará eternamente estagnado em posição de inferioridade na carreira. Para esses servidores, o meio da carreira é o limite final de progressão. Esse obstáculo ao crescimento é fator inegável de grande desestímulo e fonte inesgotável de conflitos entre as categorias que a integram.
Quando não há o sentimento de integração, possível somente em uma carreira de verdade, acirram-se os pontos de atrito, que têm como origem principal as disputas corporativas por espaços de atuação. Nesse sentido, em uma pseudocarreira, a categoria que fica em posição de "subordinação" é a mais prejudicada, uma vez que, além de tudo, tem como "superiores hierárquicos" seus maiores rivais. A experiência tem demonstrado que a evolução natural desses cargos colocados em constante disputa acaba sempre sofrendo paralisações ou atrasos. O próprio sistema hierárquico fica prejudicado. Como dizer que há hierarquia, se não há propriamente uma carreira?
Enquanto se digladiam internamente, no âmbito de uma mesma "carreira", tais categorias desperdiçam energias e recursos que deveriam estar sendo direcionados na busca de melhores condições profissionais e remuneratórias. Para administradores partidários das lições de Maquiavel, talvez seja interessante "dividir para governar". Para os servidores que estão inseridos em uma pseudocarreira, é nefasto o meio-termo que lhe é ínsito. A carreira existe somente para alguns efeitos. Não existe como fomentadora da integração, nem como instrumento de estímulos ao desenvolvimento profissional.
Para que uma pseudocarreira se transforme em uma verdadeira carreira, há duas possibilidades igualmente válidas: ou separam-se de vez os cargos, em duas ou mais carreiras, ou unem-se-os completamente, para todos os efeitos. Neste caso, de acordo com o sistema constitucional vigente, é necessário extinguir os concursos públicos para cargos intermediários.
O fator determinante para a fusão ou a separação dos cargos, ainda de acordo com o STF (vide, p.e., ADI´s 1.591, 2.335 e 2.713), é a existência, ou não, de similaridades atributivas entre os cargos considerados. Se tais cargos exercem atividades afins, de mesma natureza, mesmo conteúdo ocupacional, não só podem como devem, em uma situação ideal, em respeito à racionalização, e em busca de eficiência, integrar uma mesma carreira verdadeira, com um único concurso público de ingresso, no início da seqüência de desenvolvimento. Se não houver similaridades, cada qual deve formar uma nova carreira. A grande dificuldade resulta no fato de que não há consenso quanto ao grau de similaridades que induza à unificação dos cargos, ou a sua separação. É preciso que sejam estabelecidos critérios objetivos nesse sentido. O que não é possível é a manutenção dos meio-termos que reproduzem as pseudocarreiras.
Uma das maiores conquistas da sociedade brasileira foi inegavelmente o estabelecimento de que o ingresso em cargos públicos - ressalvadas as exceções constitucionais – somente pode ocorrer por meio de concursos públicos. Assim, de maneira isonômica, a Administração consegue admitir, por meio de ampla concorrência, aqueles candidatos que, teoricamente, estão entre os mais bem preparados no mercado de trabalho. Da mesma forma, afastam-se as possibilidades de apadrinhamentos.
A extinção do instituto da ascensão funcional também foi importante instrumento moralizador. Ascensão funcional, tal como entende o STF, é a passagem entre cargos de carreiras distintas. E, se são carreiras distintas, pelo menos em tese, não apresentam, ou não devem apresentar, pontos de similaridades entre si. E se não são afins, não se justifica mesmo a comunicabilidade entre elas.
Se, ao contrário, entre os cargos formadores das carreiras em apreço houver afinidades que justifiquem a conveniência de passagem de um para outro, então, o caso é de serem fundidos em uma única carreira verdadeira, em prol da racionalidade, e da eficiência. A partir daí, em uma mesma carreira, não há o que se falar em ascensão funcional, e sim em promoção. Promoções não só são válidas, como também, estão previstas, de acordo com a constituição vigente (art. 39, § 2º da CF/88).
Nas pseudocarreiras, ocorre algo paradoxal: o servidor ingressa por concurso público para seu cargo inicial e, se desejar chegar ao topo da carreira, tem de se submeter a novo concurso público para ingresso em cargo da mesma carreira. Ou seja: sai da carreira para nela ingressar no dia seguinte. Presta dois (ou mais, se for o caso) concursos públicos para uma mesma carreira. Isso é uma total subversão do próprio instituto dos concursos públicos, que servem para seleção de ingresso na carreira, e não como instrumento de progressão nela.
Os concursos públicos foram concebidos para selecionar candidatos ao ingresso em cargo inicial de carreira. O servidor só deve ser instado a prestar novo concurso público, ao longo de sua vida profissional, se não estiver satisfeito com a carreira a que pertence, ou se quiser mudar de área de atuação. O ideal é que seja sempre estimulado a permanecer na carreira, e nela adquirir mais e mais experiências e habilidades que, somadas a seus esforços pessoais por qualificação e aprimoramento cultural e funcional, venham a resultar em um profissional satisfeito e eficiente.
Por outro lado, a clientela dos concursos públicos deveria preferencialmente ser formada pelos jovens recém-graduados nos estabelecimentos escolares, por desempregados ou por candidatos que não se importassem em começar nova carreira, desde o cargo inicial. Isso porque, por questões de isonomia, deve haver homogeneidade no certame. A regra geral, e não a exceção, deve ser a de que o concurso público seja disputado por candidatos que estejam em igualdade de condições. E mais: o servidor deve passar por todos os estágios de desenvolvimento na carreira.
Não é desejável que, para progredir na carreira, um servidor com largos anos de experiência tenha de disputar uma vaga com alguém que, por exemplo, procure o primeiro emprego. Também é pouco interessante que um principiante na carreira venha a assumir posições "hierarquicamente superiores" àqueles que nela já dedicaram boa parte de suas vidas profissionais. Sobretudo quando há rivalidades naturais entre as categorias que formam uma pseudocarreira, essa possibilidade é altamente perniciosa.
Portanto, em busca da racionalidade, da eficiência, e da conformidade da organização administrativa de acordo com os entendimentos do STF, é necessário que todas as pseudocarreiras sejam reestruturadas, de modo a se transformarem em carreiras verdadeiras, com um único concurso público de ingresso, para preenchimento de vaga em seu cargo inicial, e com perspectivas integrais de desenvolvimento funcional. Para isso, é preciso estabelecer regras claras e objetivas em relação ao grau de similaridades que irá determinar se dois ou mais cargos devem permanecer juntos em uma mesma carreira, ou se devem ser separados em tantas carreiras de verdade quanto convenientes. O que não se deve mais admitir é que sejam eternizados os problemas que por si só representam as pseudocarreiras.