Por um Estado melhor

Por um Estado melhor

Augusto Corôa - Técnico da Receita Federal, diretor do Sindireceita

A organização política e administrativa republicana pressupõe a existência de clara distinção entre Estado e Governo. Analogamente a um avião, cuja rota é determinada por seu comandante (governo), orientada pela vontade de seus passageiros (povo), o bom funcionamento do aparelho (Estado) é fundamental para o sucesso ou fracasso de qualquer plano de vôo (políticas públicas).

Esse sistema traz implicitamente no seu tripé, povo-governo-Estado, um processo de acúmulo histórico proveniente da conscientização e da organização dos cidadãos, dentro de seus grupos sociais; do processo político de escolha, por esses cidadãos, de pessoas e partidos que reflitam e realizem os anseios da maioria com competência; e de um Estado que seja capaz de orientar-se pelo atendimento das demandas sociais em todos os seus níveis (desenvolvimento econômico, desenvolvimento humano, progresso técnico e científico) com prestação de serviços públicos de excelência sem permitir o assalto da sua estrutura por interesses patrimonialistas ou fisiológicos.

A busca pela separação do público e do privado, no âmbito do Estado, está marcada pelas reformas do serviço público. Essas reformas sempre estiveram ligadas à evolução do pensamento político e a necessidade de rever o papel do Estado em cada época. Desde meados do século XIX, em pleno vigor do ideário do Estado liberal, emerge a tese da reforma burocrática (inspirada no pensamento de Max Weber). Essa reforma trouxe os paradigmas da profissionalização, do modelo de carreiras e do concurso público como princípios estruturadores dos quadros de agentes do Estado e, também, do foco no controle administrativo dos atos desses agentes como forma de combater a corrupção e o nepotismo.

Hoje, no contexto de um mundo globalizado, essa visão de Estado não condiz plenamente com o que se espera dele: ser capaz de, com os mesmos recursos, expandir e melhorar a qualidade dos seus serviços reduzindo a carga tributária (dois fatores essenciais para que as empresas nacionais possam oferecer produtos a um apreço mais competitivo no mercado mundial). Dentro das experiências vivenciadas por países que adotaram essa filosofia de Estado consolidou-se o entendimento de que a gestão gerencial é a que mais se adequa à dinâmica da economia mundialmente intrincada, trazendo, no seu bojo, novos paradigmas, como o da visão integrada da sua estrutura (visão estratégica) e do controle por resultados dos atos dos agentes públicos.

Os ventos dessa administração gerencial chegaram ao Brasil a partir de 1995 com a criação do MARE (Ministério da Administração e Reforma do Estado) e continuam a inspirar o governo, mesmo após extinguir este Ministério, como modelo básico de administração pública aplicável ao país. E não poderia ser de outra maneira, já que o Brasil não abdicou da sua inserção no processo de globalização. Porém, embora quase nada haja mudado do ponto de vista estrutural no serviço público, pelo menos politicamente o governo tem sinalizado com o interesse de fazer reformas que visem melhorar a eficiência do Estado sem necessariamente fazer uso do receituário neoliberal. Instituiu a Mesa Nacional de Negociação Permanente que, por falta de acúmulo no debate das mudanças necessárias, tanto por parte do governo quanto dos sindicatos ali assentados, não tem atendido à expectativa da sua criação. O debate sobre organização das carreiras do serviço público, por exemplo, não avançou em nada.

Na Receita Federal percebemos a chegada da administração gerencial com introdução do programa de qualidade total, do planejamento estratégico e da criação da coordenação de gestão de pessoas. Porém o que se vê, na prática, é que nenhuma dessas tentativas de avanço no aspecto da eficiência surtiram o efeito desejado porque não foram acompanhadas de mudanças estruturais que coadunassem com os princípios intrínsecos a cada uma delas. Há uma incompatibilidade entre essa nova cultura administrativa e o sistema de carreira (ou sistema de barreira) que hoje vigora. Políticas que tenham como elementos básicos o desenvolvimento por mérito, a capacitação constante, a aferição de desempenho, e que contemple o estabelecimento de um gradiente motivacional como força motriz de um processo de desenvolvimento constante ficam impossibilitadas. Além disso, a captura das atribuições dos órgãos por cargos como mecanismo de concentração de poder para barganhar status e valorização salarial, permitindo o domínio absoluto do seu nível estratégico por membros pertencentes a estes cargos, não favorece a implementação das mudanças que tenham por finalidade dar mobilidade às posições estratégicas pelo critério da competência ou merecimento. Em face do poder de decisão (muitas vezes em causa própria) sobre as políticas dos órgãos dessas verdadeiras castas, falece o espírito republicano e nasce uma nova modalidade de patrimonialismo de corpo. Toda “inovação” na gestão não passa de manipulação para apropriação do mérito do trabalho alheio por parte dos que querem se perpetuar no controle da administração, criando um ambiente de competição predatória e desmotivadora, danoso ao alcance da eficiência plena da instituição.

Dez entre dez movimentos de servidores públicos, nas três esferas da federação, pedem por estruturação de planos de carreira. Alguns, principalmente dessas castas dominantes, pedem por planos de carreira para o seu cargo; outros compreendem carreira como um sistema que permite a mobilidade, considerando a natureza finalística das atividades exercidas, entre todos os cargos da carreira. Assim, o mérito não se restringiria ao acesso à carreira, mas, principalmente, ao seu desenvolvimento dentro dela. Ao servidor público não basta só uma política salarial que mantenha o poder de compra do seu salário, nem só a manutenção de boas condições de trabalho – embora sejam essenciais para o exercício desse sacerdócio - mas a criação de mecanismos de desenvolvimento profissional que o valorize e que permitam o seu crescimento pessoal.

A estratégia para se alcançar essa mudança de paradigmas e, conseqüentemente, se avançar na modernização do Estado brasileiro, é buscar a unidade daqueles servidores públicos que são vítimas do “patrimonialismo corporativista” numa frente única pela definição de diretrizes gerais sérias de carreiras no serviço público e contribuir com o acúmulo dessa discussão, com seminários e outros eventos que permitam uma discussão pública do tema, junto a todos os atores decisivos na sua implementação.

Não é uma tarefa fácil de se realizar, pois exige um grande esforço e investimento contra grupos fortemente enraizados na burocracia estatal, mas é a única maneira de se conseguir romper com a inércia que a estratificação rígida das castas que dominam a estruturas do Estado hoje impõe a criação de um ambiente profícuo e eficiente dentro do serviço público.