Democracia, Estado e Sindicalismo

Democracia, Estado e Sindicalismo

Augusto Corôa


Augusto Corôa é diretor de Formação Sindical do Sindireceita

Democracia, Estado e sindicalismo (entendido como uma das formas mais ativas do capital social) são três faces, dentre outras, de um sistema que culmina na determinação da estrutura organizacional e do controle do poder político na sociedade. A primeira, reflete o grau de participação da sociedade no processo de tomada de decisão sobre o destino da coletividade; a segunda, por meio da mensuração da forma e do seu grau de intervenção na economia, e nas relações sociais, mostra quais grupos determinam esse destino; e a terceira é a face que expõe a conscientização e a capacidade de interferência, sobre os dois primeiros, dos grupos organizados representados pelos sindicatos. Como produtos culturais da interação social, têm que ser compreendidos como processo histórico, didaticamente separados como processos estanques para fins de análise, mas intimamente relacionados e constituindo a representação do consenso politicamente hegemônico.

Buscando compreender a inter-relação entre esses três elementos no Brasil, podemos resgatar, nos períodos históricos, como eles se manifestam conjuntamente. Assim, comecemos analisando a Constituição Imperial de 1824, inspirada na doutrina constitucio-nalista liberal-conservadora que previa, além dos três poderes da doutrina de Montesquieu, o poder Moderador, que se sobrepunha sobre os demais, proporcionando poderes ilimitados ao Imperador. As bases do Estado eram patrimonialista e tiveram suas raízes aprofundadas nessa época. As fortunas privadas eram garantidas pelos privilégios concedidos à nobreza pelo Imperador. A Constituição de 1824 proclamou a liberdade de trabalho e facultou ao trabalhador o direito de associação, criando, assim, as bases que resultariam na criação dos sindicatos no Brasil. Mesmo sem reunir as condições objetivas que propiciassem o desenvolvimento de sindicatos, haja vista o incipiente desenvolvimento industrial, entidades como a Liga Operária (1870) e a União Operária (1880) já atuavam na defesa dos interesses dos segmentos de trabalhadores que as compunham.

A proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, conformou um novo regime político no País inspirado no federalismo americano. A autonomia adquirida pelos estados e o encolhimento da autoridade da União deu origem, no Brasil, a uma versão do caciquismo latino-americano. O Estado servia aos interesses das oligarquias mineira e paulista que substituíram a antiga burocracia imperial pela burocracia estadual, mas sem o prestígio que possuía a primeira. Nesse período, surgiram as primeiras formas de associação que traziam o gérmen da consciência sindical e da importância da organização dos trabalhadores. Surgiram a União dos Operários Estivadores (1903), a Sociedade União dos Foguistas (1903) e a União dos Operários em Fábricas de Tecido (1917). Em 1920, foi criada a Confederação Geral dos Trabalhadores, influenciada pelos ideais marxistas, disputando com a Confederação Nacional do Trabalho a direção das lutas dos trabalhadores. Com uma atuação curta, foi extinta pelo governo. Este temia que os sindicatos pudessem servir de base à pregação socialista e comunista, principalmente com a ocorrência recente do episódio da Revolução Russa (1917). Mesmo com permissão legal de associação e sindicalização, os que se atreviam corajosamente nessa missão eram perseguidos, muitas vezes até a morte, tanto pelo governo quanto pelos empresários.

O enfraquecimento das oligarquias do café com leite, devido à depressão de 1929, rompeu o dogma liberal de não intervenção estatal. Começa, então, com o apoio das elites industriais, adversárias da elite agrária dominante no período da República Velha, o Estado desenvolvimentista. Sua missão era migrar uma economia essencialmente agrária para uma economia industrial. Para tanto, foi necessária a criação de uma estrutura tecnocrática composta por profissionais com dedicação integral e que atuaria como o principal agente de transformação econômica do País. Nascia o embrião da burocracia, na acepção weberiana do termo. Esse novo modelo desenvolvimentista deu a luz à legislação trabalhista e ao que pode ser considerada a primeira legislação sindical brasileira. O Decreto nº 19.770, promulgado em março de 1930, a despeito de significar um momento histórico para o reconhecimento da atividade sindical, trazia o ranço autoritário do peleguismo. A iniciativa de Vargas buscou claramente o aparelhamento dos sindicatos, retirando-os da esfera privada e os tornando pessoas de Direito Público atrelados ao governo. A Constituição autoritária de 1937 subordinou definitivamente os sindicatos ao Ministério do Trabalho.

Entre 1945, com a queda do Estado Novo, e 1964, início da ditadura militar, a política no Brasil tem os caracteres populistas herdados da era Vargas. Baseia-se na propaganda nacionalista e na promoção da industrialização, tendo o Estado como o seu promotor. Entre o liberalismo e o autoritarismo, com uma gestão econômica estatizante e modelo de desenvolvimento baseado no estímulo ao capital nacional e internacional, foi um período onde a Guerra Fria, como pano de fundo, incentivou os discursos e práticas radicais, tanto no campo da esquerda quanto da direita, que descambou no golpe militar de 1964. No campo das lutas dos trabalhadores, o aumento do contingente operariado, concomitantemente com o crescimento de sua organização política e sindical, e alguma liberdade controlada, culminaram com uma série de greves de cunho político. Reivindicava-se a liberdade sindical, contra a presença de forças americanas no País, pela defesa das riquezas nacionais, dentre outras frentes de contestação. Os sindicatos se uniram em vários pactos que produziram um período de grande dinamismo na ação sindical.

O Golpe de 1964 foi produto do ambiente de distensão entre os blocos capitalistas e socialistas. Com a renúncia de Jânio Quadros e a ascensão de João Goulart, contra a vontade dos grupos conservadores, houve a abertura às organizações sociais, com sua proposta de reformas de base, e uma forte reação das classes empresariais, banqueiros, militares, igreja católica e da classe média, além dos EUA, temendo uma guinada do Brasil para o socialismo. Esse período é de sombra para o sindicalismo, com a intervenção do governo militar sobre os sindicatos. Embora com algumas manifestações contra a ditadura, somente em 1978, com o reinício do processo de abertura lenta, gradual e segura do presidente Geisel, o sindicalismo começa a renascer, culminando com a criação da Central Única dos trabalhadores (1983). A CUT pregava um sindicalismo classista, considerando a classe trabalhadora como produtora de riqueza social e buscando a maior participação possível de trabalhadores e a sua organização em oposição ao poder político do grande empresariado. Tinham o socialismo como perspectiva geral, buscando unir sindicatos e partidos num mesmo movimento de emancipação definitiva da classe trabalhadora, construída pelos próprios trabalhadores. Combatiam o chamado neopeleguismo que se submetia aos limites estabelecidos pelo poder político dos empresários para a prática sindical. Os neopelegos pregavam a prática sindical desvinculada da política e destinavam-se a promover a conciliação entre os capitalistas e os trabalhadores.

Do fim dos anos 70 até o início dos anos 90, o sindicalismo foi fundamental para a universalização das conquistas sociais. Hoje, os sindicatos da iniciativa privada foram vitimados pelas transformações estruturais no mundo do trabalho. Os sindicatos dos servidores públicos sofreram um grande desgaste com o avanço da política neoliberal dos governos que se seguiram à Nova República. A ideologia neoliberal isolou o servidor público do cidadão e o voltou contra o servidor, que sempre dependeu do apoio da população para suas reivindicações. Era preciso romper com a trajetória histórica de conquistas de direitos, tanto no setor público como no privado, para a implantação do modelo econômico atualmente hegemônico.

Vivemos, nos nossos dias, um momento de democracia consolidada. Não existem mais tensões ideológicas que justifiquem um endurecimento de qualquer setor. Mas as diferenças de interesses entre os grupos sociais ainda são flagrantes. Embora o modelo neoliberal tenha sido derrotado em vários países, inclusive no Brasil, deixou marcas indeléveis como a reforma do Estado e a inserção do País no caminho da economia globalizada. Neste cenário, a garantia dos direitos sociais e a institucionalização das relações de trabalho dependem de um novo pacto entre as organizações sindicais. Para isso é preciso reconstruir um projeto de poder para a classe trabalhadora que seja capaz de unificar a ação sindical dos setores público e privado com foco na preservação da democracia, do fortalecimento do Estado e na garantia dos direitos sociais. $