Painel Jurídico - A greve do serviço público

A greve do serviço público

A greve, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira in Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª edição, ED. Nova Fronteira, 1986, Pág. 868, significa "recusa, resultante de acordo de operários, estudantes, funcionários, etc., a trabalhar ou comparecer onde o dever os chama, enquanto não sejam atendidos em certas reivindicações; parede".

A Lei nº 7.783/89, que regulamenta o direito de greve para os trabalhadores celetistas, traz a definição de greve em seu artigo 2º, nos seguintes termos:

"Art. 2º - Para os fins desta Lei, considera-se legítimo exercício do direito de greve a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador."

Assim, pode-se definir greve, no serviço público, como uma manifestação dos servidores que caracteriza-se pela paralisação coletiva, parcial ou total, das atividades funcionais, como forma de pressionar a Administração, no intuito de defender seus interesses, buscando melhorias nas condições de trabalho, bem como, uma remuneração justa.

Convém destacar que a greve do servidor público está prevista na Constituição Federal em seu art. 37, inciso VII, senão vejamos:

"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)

VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)"


Apesar da Constituição determinar que a greve no serviço público deva ser regulamentada, essa regulamentação é de competência tão somente do Poder Legislativo, não podendo qualquer outro ato normativo do Poder Executivo regular ou limitar o exercício de tal direito.

O dispositivo constitucional supracitado deve ser interpretado, dentro do estrito domínio da razoabilidade, ou seja, o direito de greve dos servidores públicos será exercido nos termos e limites definidos em lei, e que, portanto, enquanto a lei não define esses termos nem fixa esses limites, a greve no serviço público é praticável tal como ela o é pelos trabalhadores em geral.

Tendo em vista essa verdadeira mora legislativa, em 19/05/1994, o Supremo Tribunal Federal ao julgar o Mandado de Injunção nº 20/DF, declarou a inertia deliberandi do Congresso Nacional, configurada objetivamente pela omissão legislativa no desempenho do seu poder-dever de editar a lei requerida.

No entanto já se passaram quase 19 anos, desde a promulgação da Carta Magna e 13 anos da decisão do Mandado de Injunção nº 20-4, e até a presente data não existe qualquer regulamentação, por parte do Legislativo, nesse sentido.

Ora, não é razoável que um direito garantido há 19 anos não possa ser exercido por inércia do Poder Legislativo, tampouco pela "regulamentação" do Poder Executivo, que não é competente para restringir o exercício de tal direito.

Dessa forma conclui-se que tal inércia não resulta na impossibilidade do exercício do direito de greve pelo servidor público, porque este existe e foi reconhecido pela Constituição Federal. Este é o entendimento dos Tribunais numa demonstração clara de que diante da arbitrariedade da Administração Pública, aliada à inércia do Poder Legislativo, deve-se recorrer ao Poder Judiciário para resguardar a segurança do ordenamento jurídico e os direitos inerentes à coletividade, principalmente quando se trata de direito expressamente garantido pela nossa Constituição.

Ocorre que hoje o servidor não pode exercer o seu direito de greve sem esperar as retaliações por parte da Administração, com ameaças, com o corte de ponto, com processos administrativos disciplinares e outras formas de coibir a adesão aos movimentos paredistas legítimos dos servidores.

Na verdade, o Administrador não pode determinar o corte do ponto dos servidores que aderem ao movimento reivindicatório, com o conseqüente rebaixamento de suas remunerações, pois esbarra em evidente ilegalidade e abuso de poder, ferindo direito líquido e certo do servidor.

O servidor que exerce o seu direito de greve não está faltando deliberadamente ao serviço, mas sim lutando por melhores condições de trabalho e valorização, garantia conferida pela Carta Magna, que somente poderia ser restringida pelo legislador por meio de lei.

A Administração Pública rege-se precipuamente pelo princípio da legalidade, cabendo ao Administrador agir de forma adstrita à lei, não podendo exercer qualquer ato administrativo sem que haja a devida previsão legal, não há previsão legal para o corte de ponto, tampouco para a instauração de processo administrativo disciplinar visando penalizar o servidor que adere ao movimento paredista, isto seria um disparate, uma afronta direta ao que conferiu o constituinte.

A Administração não pode, em hipótese alguma, agir de forma arbitrária, contrária à lei, sob pena de ter seu ato tomado por ilegítimo e ineficaz. Mesmo em seus atos discricionários, esta deve ater-se ao estrito limite da lei, conforme lição do renomado administrativista HELY LOPES MEIRELLES in Direito Administrativo Brasileiro, 30ª ed. atualizada, São Paulo: Ed. Malheiros, 2005, pág. 87.

"LEGALIDADE – A legalidade, como princípio de administração, significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem-comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.

A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito (...)

Na Administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular, significa "pode fazer assim"; para o administrador público significa "deve fazer assim".

As leis administrativas são, normalmente, de ordem pública, e seus preceitos não podem ser descumpridos, nem mesmo por acordo ou vontade conjunta de seus aplicadores e destinatários, uma vez que contenha verdadeiros poderes-deveres, irrelegáveis pelos agentes públicos."


A ilegalidade do corte de ponto dos servidores é flagrante. O desconto dos dias de paralisação somente pode ser feito por meio de declaração judicial sobre a abusividade da greve e somente dessa forma. Além disso, nenhuma lei permite a retenção de salários em razão de greve, paralisações, fenômeno sócio-laboral e não uma simples ausência ao trabalho, conforme preceitua o artigo 45 da Lei nº 8.112/90:

"Art. 45. Salvo por imposição legal, ou mandado judicial, nenhum desconto incidirá sobre a remuneração ou provento."

O texto legal é claro no sentido de que a Administração Pública, caso entenda que a paralisação não é legítima, busque a via judicial própria para permitir-lhe não proceder aos pagamentos, bem como se entender que atividade seja essencial que se utilize dos meios judiciais cabíveis para garantir um quantitativo mínimo de servidores assegurando a continuidade dos serviços, pois ante a ausência de lei limitadora do direito de greve deve prevalecer o bom senso e a eqüidade, o que somente poderia ser feito com o respaldo de decisão judicial.

É certa a inexistência de preceptivo legal permissor do desconto de vencimentos em razão de greve. Ademais, os vencimentos dos servidores públicos são protegidos pelo princípio da irredutibilidade, inscrito no art. 37, XV, da Constituição Federal.

O razoável é que ante a inércia legislativa o direito de greve do servidor público não seria também um direito ilimitado, deve-se portanto, utilizar da analogia com as normas que disciplinam o direito de greve no setor privado, o que não se pode de forma alguma é inviabilizar indefinidamente o seu exercício.

Assim, em que pese a inércia do Poder competente para regulamentar esse direito garantido aos servidores públicos, não pode o Poder Judiciário esquivar-se de reconhecer o direito de greve dos servidores públicos, sob pena de violar o art. 4ª, da Lei de Introdução ao Código Civil, que não admite lacunas, em função do princípio da auto-integração do ordenamento jurídico.

Importante ressaltar que a verdadeira evolução trazida pela Constituição de 1988 ao admitir aos servidores públicos o direito de greve, pois no ordenamento anterior mencionado direito era a eles vedado. O processo histórico assume particular importância na interpretação do preceito constitucional vigente, pois, não obstante a proibição, muitas eram as greves no serviço público, especialmente no período imediatamente anterior à promulgação da Lei Maior, e o texto constitucional nada mais fez do que abolir a proibição anterior, reconhecendo tal direito social e garantindo-o aos servidores públicos. Se a greve deixou de ser proibida, passou a ser permitida a partir de 05 de outubro de 1988.

Ressalta-se ainda que o Supremo Tribunal Federal novamente está julgando Mandados de Injunção nesse sentido, os MI 670 e MI 712, o julgamento já foi iniciado mas está suspenso pelo pedido de vista do Ministro Joaquim Barbosa. Até agora sete ministros já se manifestaram no sentido de aplicar alguns dispositivos da Lei 7.783/89 (que regulamenta a greve na esfera privada) à greve dos servidores públicos enquanto o Congresso Nacional não elabora a lei específica para regulamentar a greve no serviço público.

Destacam-se trechos do voto do Exmo. Sr. Ministro Celso de Mello que já proferiu o seu voto no julgamento do Mandado de Injunção 712:

"A hipótese versada nos presentes autos refere-se a uma típica situação de desrespeito à Constituição da República, por inércia normativa unicamente imputável ao Congresso Nacional (e,também, ao Presidente da República), eis que - decorridos quase dezenove (19) anos da promulgação da Carta Política - esta, no que concerne ao art. 37, VII, ainda não foi regulamentada, frustrando-se, desse modo, mediante arbitrária omissão, o exercício, pelos servidores públicos civis, do direito de greve.

(...)

É preciso proclamar que as Constituições consubstanciam ordens normativas cuja eficácia, autoridade e valor não podem ser afetados ou inibidos pela voluntária inação ou por ação insuficiente das instituições estatais. Não se pode tolerar que os órgãos do Poder Público, descumprindo, por inércia e omissão, o dever de emanação normativa que lhes foi imposto, infrinjam, com esse comportamento negativo, a própria autoridade da Constituição e afetem, em conseqüência, o conteúdo eficacial dos preceitos que compõem a estrutura normativa da Lei Maior.

A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado, pois nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se revelarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos."


Nota-se que agora o Supremo Tribunal Federal diante de um lapso temporal tão grande desde a promulgação da Carta Magna bem como da data da decisão do Mandado de Injunção nº 20/94, busca alternativas juridicamente viáveis para resguardar o direito de greve dos servidores públicos em respeito à Constituição e ordenamento vigente.

Enquanto o Legislativo permanece inerte nessa matéria, a esperança de poder exercer um direito constitucionalmente garantido a 19 anos, sem retaliações, está depositada na nossa Corte Suprema.

Alessandra Damian Cavalcanti
David Odísio Hissa
Advogados do SINDIRECEITA