Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal
04/10
Governantes nem sempre expressam sua predileção pelos impostos, mas não escondem sua satisfação quando eles ingressam nas burras do Tesouro. É que aí tem início sua capacidade de pagar, fazer e conceder, que constitui elemento basilar do Poder. Essa satisfação dos governantes guarda relação de equivalência com o poder de isentar de impostos pessoas, grupos sociais, empresas ou setores econômicos. A magnanimidade é tão poderosa quanto a imposição.
Um tributarista francês que assistia a uma reunião do CONFAZ (Conselho de Política Fazendária), integrado pelos secretários estaduais de Fazenda, revelou sua perplexidade com a atenção dispendida à concessão de favores fiscais, no âmbito do ICMS, em lugar dos cuidados que deveriam ser reservados a uma maior efetividade na cobrança daquele imposto. Era o espetáculo da generosidade pouco virtuosa.
A consequência dessa prodigalidade nos favores fiscais gera distorções na economia, afeta o risco moral, favorece a sonegação e o planejamento fiscal abusivo, e eleva os níveis de complexidade e instabilidade do sistema tributário. É justamente por isso que a doutrina tributária acolheu o princípio da universalidade como um dos seus pilares, em virtude do qual se prescreve o uso moderado dos impostos como instrumento auxiliar de política econômica.
Nos anos recentes, a política fiscal brasileira tem afrontado ostensivamente aquele princípio. Os governantes estão investidos de uma verdadeira fúria legiferante em matéria tributária. Aparentemente com bons propósitos extrafiscais, foi criada uma verdadeira miríade de regimes especiais no PIS e na Cofins, a ponto de convertê-los em tributos que nem o fisco nem os contribuintes conseguem mais entender.
Certamente por essa razão, há nove anos não se consegue editar o regulamento daquelas contribuições, em franca desobediência ao que estabelece o art. 212 do Código Tributário Nacional. A farra do Pis/Cofins abriu espaço para uma industriosa litigiosidade, em prejuízo da segurança jurídica e da estabilidade das relações tributárias.
São conhecidas as razões que levaram à concessão de incentivos do IPI incidente sobre automóveis, no contexto da crise econômica de 2009. Argumentou-se com a preservação de empregos, o que, sem dúvida alguma, é uma boa motivação. Não se atentou, entretanto, para a possibilidade de que esses incentivos associados a uma política creditícia temerária pudessem levar ao caos nossas raquíticas tramas urbanas e abrissem portas para uma avalanche de carros importados, provenientes em boa parte da Ásia.
Inverteu-se o sinal da motivação. As cidades brasileiras estão virtualmente paralisadas por engarrafamentos contínuos e, com auxílio de incentivos estaduais concedidos às importações, passamos absurdamente a subsidiar a geração de empregos no Exterior. O Decreto nº 7.567, de 15 de setembro de 2011, pretendeu enfrentar a crescente invasão de carros estrangeiros, ao elevar, em trinta pontos percentuais, as alíquotas dos automóveis, cujos índices de nacionalização fossem inferiores a 65%.
Parece razoável que se busque proteger a indústria nacional, ainda que se saiba que parte significativa dos seus problemas conjunturais esteja associada a um câmbio desproporcionalmente apreciado. Essa preocupação, todavia, não autoriza a escolha de opções sujeitas à contestação judicial ou vulneráveis a ações que visem ludibriar as restrições.
O requisito da nacionalização poderá ser questionado na OMC (Organização Mundial do Comércio), por ofensa às regras pactuadas naquela instituição. Mais grave, contudo, é a inobservância de exigência de noventa dias para eficácia do ato, em desacordo com norma introduzida na Constituição pela Emenda nº 42, de 2003.
São fragílimos os argumentos de que essa restrição alcança tão somente a lei que fixa a alíquota do IPI e não o decreto que, nos limites de variação autorizados, a altera. Em verdade, o decreto integra a lei, ao conferir-lhe efetividade. De outra forma, a mudança constitucional seria letra morta, pois raramente se altera a lei geral das alíquotas do IPI. Portanto, a prevalecer aquela restritiva interpretação, a Emenda nº 42 teria sido inócua.
O legislador, ao promover a alteração constitucional, visou afastar incertezas nos negócios e prevenir danos irreparáveis ao contribuinte, especialmente nos casos de produtos que ainda se encontram nos pátios das fábricas ou que estejam vinculados a importações em curso.
A matéria foi submetida ao crivo da Justiça, tendo sido concedidas liminares. Pode-se antever uma longa batalha judicial. No meu entender, sobram argumentos aos que impugnaram a elevação da alíquota, sem a observância do prazo de noventa dias. De tudo, resta uma dúvida. Qual a lógica que explica correr-se o risco de sofrer um revés na Justiça, ao conferir vigência imediata à medida, em lugar de aguardar o razoável prazo de noventa dias? Desconheço a existência de razões econômicas ou fiscais.
Afora isso, deve-se ter em conta a vulnerabilidade da medida. A verificação do índice de nacionalização é campo propício a controvérsias e corrupção. As exceções para os veículos importados do México e Argentina, já agora também do Uruguai, é uma brecha por onde os carros estrangeiros poderão entrar. O IOF é outro tributo que tem sido utilizado à exaustão, algumas vezes com objetivos regulatórios e outras com fins meramente arrecadatórios.
A extinção da CPMF inspirou o aumento da alíquota do IOF, com o exclusivo propósito de compensar a decorrente perda de arrecadação. A diferença é que, ao menos em tese, a CPMF se destinava ao financiamento dos serviços de saúde, e o IOF não.
As dificuldades para lidar com o câmbio apreciado estimularam o uso do IOF para tributar as compras com cartão de crédito no Exterior, aplicações financeiras provenientes do Exterior ou, de forma ainda ininteligível, os derivativos. Não há avaliação dos efeitos dessas medidas, o que denota improvisação e falta de rumo. Não é desarrazoada a utilização dos tributos em auxílio à política econômica. O uso imoderado, entretanto, provoca instabilidade paralisante nos negócios.