Clic RBS - 01 de abril de 2013
Texto de Ângela Almeida mestre em Direito, doutoranda em Letras e Analista-Tributário da Receita Federal do Brasil
Em ‘O Cortiço’, Aluísio Azevedo explicita os problemas sociais e morais do Brasil ao fim do Século 19
Denunciar as mazelas sociais e se afastar da visão fantasiosa da vida, presente no romantismo. Estes eram os principais objetivos do movimento literário Naturalismo, no qual o romance O Cortiço se insere. A obra de Aluísio Azevedo, publicada em 1890, desenha um mural da sociedade do Rio de Janeiro do fim do Século 19 e de suas relações sociais. É como romancista social que melhor se afirmou o talento de Aluísio. É o escritor apaixonado, o artista combativo, pondo a nu os problemas sociais e morais da realidade brasileira do seu tempo: o preconceito de cor, os preconceitos de classe, a ganância de lucro fácil – e todas as injustiças e misérias decorrentes. Mais do que o indivíduo, é a sociedade que lhe interessa. Mais que miniaturista da alma, é o pintor de amplos murais. E é na pintura um verdadeiro impressionista: colorido vivo, tons fortes e quentes. Mostra preferência pelos tipos vulgares e grosseiros, pelos ambientes sujos e situações deprimentes – é o artista procurando acordar a consciência do leitor, da sociedade, comprometida nas injustiças!
O impacto da industrialização, como sabemos, promoveu a centralização urbana em escala nunca vista, criando novas e terríveis formas de miséria – inclusive a da miséria posta diretamente ao lado do bem-estar, com o pobre vendo a cada instante os produtos que não poderia obter. Essa nova situação logo alarmou as consciências mais sensíveis e os observadores lúcidos, gerando uma série de romances que a denunciam. Aluísio foi o primeiro dos nossos romancistas a descrever minuciosamente o mecanismo de acumulação do capital. No seu romance, está presente o mundo do trabalho, do lucro, da competição, da exploração econômica visível, que dissolvem a fábula e sua atemporalidade.
O crítico literário Antonio Candido conta que no final do Século 19 era corrente no Rio de Janeiro o ditado humorístico: “Para português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para vestir, pau para trabalhar”. O crítico explica que, para o brasileiro livre daquele tempo, com tendência mais ou menos acentuada para o ócio, favorecido pelo regime de escravidão, o português se nivelaria ao escravo porque, de tamanco e camisa de meia, parecia depositar-se (para usar a imagem usual da época) na borra da sociedade, pois “trabalhava como um burro de carga”. A diferença consistia em que: “enquanto o negro escravo e depois liberto era de fato confinado sem remédio às camadas inferiores, o português, falsamente assimilado a ele pela prosápia leviana dos ‘filhos da terra’ podia eventualmente acumular dinheiro, subir e mandar no país meio colonial”.
De fato, no romance, o português João Romão não se distingue, inicialmente, pelos hábitos, da escrava Bertoleza: “empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois”. Mas João Romão era o proprietário do cortiço, do qual vai tirando os meios que o elevam no fim do livro ao andar da burguesia, pronto para ser comendador ou visconde.
Bertoleza, apesar de ser explorada até a exaustão por seu companheiro, era feliz, pois vivia iludida na sua falsa liberdade. Ela só compreendeu a sua posição e a sua condição de “animal de trabalho” com a transformação do companheiro. “E Bertoleza bem que compreendia tudo isso e bem que estranhava a transformação do amigo. Ele ultimamente mal se chegava para ela e, quando o fazia, era com tal repugnância, que antes não o fizesse. A desgraçada muitas vezes sentia-lhe cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes estrangeiras e chorava em segredo, sem ânimo de reclamar seus direitos. Na sua obscura condição de animal de trabalho, já não era o amor que a mísera desejava, era somente confiança no amparo de sua velhice quando de todo lhe faltassem as forças para ganhar a vida”.
No momento em que enriqueceu e que foi aceito como futuro marido da filha de Miranda, o negociante português, proprietário do sobrado vizinho ao cortiço, João Romão quis se livrar da escrava Bertoleza. Ele sentia-se atrelado à “negra dos diabos, e não conseguia arredar logo de sua vida aquele ponto negro: apagá-lo rapidamente, como quem tira da pele uma nódoa de lama!” João Romão se via como alguém que lutara muito e que estava prestes a ver seus sonhos ambiciosos se desfazerem no ar.
João Romão contou com a ajuda de Botelho para se livrar de Bertoleza. Saudosista, o velho Botelho, na sua juventude, fora um comerciante de escravos, profissão da qual muito se orgulhava. Foi com muita decepção e raiva que tomou conhecimento das ideias da época sobre abolição. Sempre que podia vociferava, classificando os abolicionistas e os partidários da Lei Rio Branco de “cáfila de salteadores”. O Brasil, em sua opinião, só tinha uma serventia: “enriquecer os portugueses, e que, no entanto, o deixara, a ele, na penúria”.
O final do romance seguiu uma forma crítica, apontando os “abolicionistas de ocasião”, como refere a historiadora Marília Conforto. João Romão denunciou Bertoleza aos seus antigos donos, que vieram até a venda para resgatar a escrava fugida. Ao ver seus antigos donos e pressentir o que estava para lhe acontecer, Bertoleza se suicidou. João Romão, então livre da sua “nódoa de lama”, lucrou novamente com a moribunda instituição escravista. Nesse momento (o do suicídio de Bertoleza), parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha de casaca, trazer a João Romão o diploma de sócio benemérito. Ele mandou que um empregado os conduzisse para a sala de visitas!