É preciso aprovar outra lei de repatriação de ativos (Artigo)

Valor Econômico - 22 de julho 2016


Quase US$ 400 bilhões. Essa é uma estimativa da montanha de dinheiro de brasileiros no exterior. São recursos que, se voltassem ao país, ajudariam o desenvolvimento econômico e social, ao serem aplicados no setor produtivo e no de infraestrutura. Para o governo, os bilhões arrecadados em impostos significariam uma chance de reequilíbrio fiscal sem necessidade de elevar tributos. Para o cidadão que adere à repatriação, se abriria a oportunidade de regularizar sua situação fiscal, cambial e penal, desde que os recursos não tivessem origem criminosa. Para as empresas, esse dinheiro poderia ser usado para abater dívidas ou para investimentos, com geração de empregos e de renda.


Entretanto, a Lei de Repatriação recentemente aprovada no Brasil (Lei nº 13.254, de 13 de janeiro de 2016) contém tantos problemas, gera tanta insegurança jurídica, que pode acabar se tornando inócua, por causa da pequena quantidade de recursos que seriam repatriados.


O grande problema da lei brasileira é sua conotação muito menos voltada para a anistia e para a regularização. Na verdade, volta-se para o "law enforcement". A lei não cita a palavra anistia uma única vez. Difícil não julgar que essa omissão tenha sido proposital.


Grande problema da lei é sua conotação menos voltada para anistia e regularização e mais para o ´law enforcement´


A comprovação de origem lítica dos bens e recursos que se encontram no exterior, por exemplo, é um entrave. Há, certamente, milhares de casos em que os brasileiros enviaram esses recursos para o exterior e não têm como provar que se originaram licitamente. Casos de venda de mercadorias sem nota fiscal, de venda de bens não declarados, de recursos que foram auferidos no exterior e não declarados, assim por diante. Há casos em que o contribuinte não terá mais documentos para comprovar essa origem ou essa comprovação poderá tornar o processo oneroso e complexo, afastando o fim a que se destina a lei: anistiar, regularizar e arrecadar. Uma solução é exigir uma declaração de que os bens não se originaram de atividades criminosas, notadamente aquelas em que a lei veda a repatriação.


Não faz sentido a Lei de Repatriação considerar como se criminoso fosse o indivíduo que aderiu ao chamado de regularização. Inaceitável permitir, como permite, a punição quando a regularização não for o único elemento para efeito de expediente investigatório ou procedimento criminal. Isso pode ser uma armadilha porque, em havendo outros elementos sobre os mesmos fatos, a repatriação autodeclarada poderá ser apenada. Aqui reside o principal problema de credibilidade e eficácia da Lei.


Outro problema é considerar falsa a declaração que tenha esquecido um bem existente no passado. Neste caso, todo o processo estará inviabilizado, mesmo já tendo o indivíduo promovido sua autodelação. Como se defenderá?


Quanto à tributação, a lei promove um exagero. Prevê imposto de 15% sobre o que for repatriado, mas acrescenta uma multa de iguais 15%. Outros países cobraram de 2% a 20%. Em se tratando de anistia, não seria necessária a cobrança de multa, mas tão somente do imposto devido.


A Receita Federal regulamentou a lei por meio da Instrução Normativa nº 1.627, de 15 de março de 2016. Além disso, editou em seu site uma lista de perguntas e respostas. Em ambos os casos, vem restringindo, ainda mais, a interpretação da norma. Considera, por exemplo, um filme - não um retrato - quando se verifica o que havia no exterior na data de 31/12/2014, exigindo que a declaração informe o maior valor existente fora do país e sobre ele determine a incidência do imposto de 30%. Imaginemos a hipótese de uma pessoa que tinha US$ 10 milhões no exterior, mas perdeu ou gastou US$ 7 milhões nos últimos anos. Ao se regularizar, terá que pagar os 30% de imposto sobre os US$ 10 milhões, ou seja, o maior saldo. Ora, 30% de US$ 10 milhões constituem o exato valor que ele, hoje, teria em conta.


Além disso, não se cobra o imposto apenas sobre o bem declarado. A cobrança incide sobre todas as pessoas que tiveram a propriedade desse bem. Imaginemos, então, a situação em que um casal tem um imóvel e o marido passou esse bem para a esposa, em uma eventual separação. Posteriormente, a mãe passa o mesmo imóvel para o nome do filho. Segundo a interpretação da Receita Federal, os três terão que regularizar a sua situação e cada um deles terá que pagar o imposto de 30%. Nesse caso, 90% do valor do imóvel irá para o imposto. Difícil a adesão nessa condição.


Pior ainda é a situação daquele que já teve bens e valores no exterior e não os tem mais. Neste caso, para não responder futuramente a qualquer investigação ou ação penal, terá que verificar o maior saldo que teve, dentro do prazo prescricional dos crimes (16 anos para lavagem de dinheiro, por exemplo) e sobre esse maior valor pagar o imposto e a multa de 30%.


É sabido que o desenvolvimento da cooperação internacional contra os crimes financeiros expõe, cada vez mais, aquele que tem recursos e bens não declarados no exterior. Tudo isso faz com que o momento atual seja totalmente propício à repatriação de recursos. Tais leis, contudo, no Brasil ou alhures, apenas surtirão efeitos se outorgarem garantias aos que a elas vão aderir e adotarem pagamento racional de tributos. Não adianta acenar com punições penais ou fiscais. É anistia e assim precisa ser vista. Anistia é perdão. Ao final, os bens serão conhecidos e sobre eles serão pagos os impostos.


Vários países estão promovendo a repatriação de ativos enviados ilegalmente por seus cidadãos e empresas ao exterior. Itália, Argentina, Chile, Alemanha, Colômbia e Estados Unidos, entre outros, chegaram à conclusão de que esses recursos estavam enriquecendo outros países, gerando divisas fora. Viram que trazer esses recursos de volta é um jogo de ganha-ganha.


O Brasil precisa aprovar uma nova Lei de Repatriação de Ativos. Se não encararmos os problemas da nossa lei atual, corremos o risco de chancelar a pecha de país que nunca perde a oportunidade de perder uma oportunidade.


Luiz Paulo Barreto é advogado, economista e diretor corporativo institucional da CSN. Foi ministro da Justiça em 2010, secretário-executivo do Ministério da Justiça entre 2003 e 2012. e trabalhou no texto do primeiro projeto de lei de anistia a bens e recursos enviados ao exterior, em 2003.